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Tratamento de choque
Manoel Carlos pretende abordar preconceitos de modo chocante e "conscientizar" o público de "Páginas da Vida", que estréia dia 10
Marcio de Souza/TV Globo
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Cena de arrastão gravada no Rio, após batalha para conseguir autorização da prefeitura, para a nova novela das oito da Globo |
MARCELO BARTOLOMEI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DO RIO
O que começa como um bate-papo sobre o clima no café
da manhã, um comentário sobre um livro ou uma conversa
fiada no elevador parece uma
simples visão do dia-a-dia em
"Páginas da Vida", nova novela
das oito da Globo, que estréia
no dia 10. Não para o autor Manoel Carlos, 73, que escreve cenas para ilustrar a vida de mais
de 80 personagens, alguns envolvidos em tramas polêmicas.
A idéia é fazer com que o público, primeiramente, se identifique com os personagens, para depois soltar uma "bomba"
sobre aquelas vidas aparentemente felizes. Chocar para
conscientizar, diz o autor.
A novela baterá forte no preconceito a portadores de deficiência, desta vez uma criança
com síndrome de Down que será rejeitada pela família, e em
um soropositivo que será expulso de um hospital católico.
Reclamações já surgiram.
Para gravar as cenas de um arrastão para o primeiro capítulo, a produção travou uma batalha com a Prefeitura do Rio.
À Folha, Manoel Carlos fala
da violência no Rio, cidade que
adotou desde 1971, e comenta a
necessidade de provocar.
FOLHA - Como surgiu "Páginas da
Vida"?
MANOEL CARLOS - Minhas novelas, na verdade, são muito antigas. Coleciono histórias. Quando fiz "Laços de Família", já tinha "Mulheres Apaixonadas".
Quando a fiz, foi um risco por
fazer várias histórias importantes correrem ao mesmo
tempo. Fiz vários núcleos, cada
um com um protagonista. Desta vez extrapolei, tenho umas
15 histórias importantes.
FOLHA - O sr. criou uma nova narrativa para novelas então?
CARLOS - A mim cansa muito
escrever uma novela. É preciso
haver um certo encantamento
em cada uma que eu faço. Senti
necessidade de fazer uma
transformação na minha maneira de fazer novela e encontrar nisso um novo estímulo.
Não me preocupo teoricamente. É um fazer fazendo. Entendo que uma mulher que viva
num apartamento tenha vizinhos, porteiro, parentes, que
ande pela rua e conheça o jornaleiro e o dono da padaria. Essas pessoas todas são personagens, não figurantes.
FOLHA - A TV precisa de realidade?
CARLOS - Eu me preocupo com
isso, não sei se é uma demanda
da TV. Alguns autores repudiam a realidade. O problema
da ficção é que precisa fazer
sentido; a realidade, não. Procuro fazer uma ficção verossímil, viável e sem grandes discrepâncias. Quando converso
com as pessoas, pergunto se estão acreditando no que estão
vendo. Coloco isso para diretores e atores, gosto que eles vivam os personagens. Eles têm
nome, sobrenome e signo. É tudo muito trivial, não é delirante. As chagas sociais são inesgotáveis, ainda mais no Brasil.
FOLHA - As cenas do arrastão na
praia já provocaram polêmica...
CARLOS - A novela nem começou e já causou comoção. A história começa em 2001, quando
ocorriam arrastões, mas é apenas um grupo de rapazes que
corre pela praia para roubar
uma bolsa e um celular e provoca pânico. O prefeito se manifestou dizendo que não existem mais esses arrastões. É
verdade. Há muito tempo não
se vê um arrastão, felizmente.
A violência me preocupa, pois
tenho filhos e netas.
FOLHA - Quais temas o sr. prevê
que vão incomodar mais?
CARLOS - A polêmica que acho
que mais vai mexer com o espectador será positiva, que é
sobre a síndrome de Down. Minha intenção é mostrar tudo o
que cerca as crianças portadoras, como a inclusão e a exclusão. Isso vai gerar muita polêmica porque há dois grupos
fortes e atuantes no país. Não
tenho partido. Conversando
com as pessoas que têm o problema -e nunca imaginei que
fossem tantas-, vi que será
uma discussão benéfica. Há famílias que tiram as crianças da
sala quando chega uma visita.
O número de casamentos que
se desfaz é muito grande. O homem, normalmente, não
agüenta a barra, se isola e fica
infeliz. Na escola, é um problema igualmente grave. Se você
coloca uma criança portadora
de Down numa escola normal,
todas as crianças a recebem
bem, mas os pais reclamam.
Com toda sinceridade, não sei o
que faria se tivesse um filho especial. É preciso chocar, senão
não funciona. Os portadores
são invisíveis e preservados.
FOLHA - A novela também falará
de Aids. A igreja se manifestará?
CARLOS - Por quê? A igreja
sempre cria problemas, mas eu
sou católico fervoroso e fui
criado em colégio de padres
quando adolescente. A polêmica pode ser por conta do hospital receber um paciente sem saber que ele é soropositivo. Uma
noviça cuida especialmente dele, que se apaixona por ela. Eu
ainda não decidi como ela corresponderá a isso. Quando ela
descobre, ela o esconde. O hospital não tolera isso, e eu já vi
acontecer na vida real. Não sei
ainda se ela abandonará o hábito para ficar com ele. Usarei a
Aids para chamar a atenção para o que percebi ser uma baixa
de guarda. Acho que as pessoas
voltaram a fazer sexo sem segurança. Me preocupo com esse
tipo de abordagem. Não será
nada escandaloso, pois sei que
é preciso conscientizar.
FOLHA - É a terceira vez que Regina
Duarte faz uma Helena. Por que ela?
CARLOS - Tenho uma longa história com ela. É uma atriz impecável, sou seu grande admirador. Ela tem disciplina, segurança e me passa uma grande
tranqüilidade no trabalho. Escrevi "Malu Mulher" [1979] para ela. Conheço os seus recursos e nos entendemos muito
bem. Ela está numa faixa de
idade [59 anos] que me interessa muito focar e escrever. Gosto de escrever para essa faixa de
idade, de gente de mais de 40
anos. Essa faixa tem grandes
histórias para contar: passaram por desilusões, enganaram, foram enganadas, sofreram perdas e casaram os filhos.
Na minha cabeça, somente a
Regina poderia fazer esta Helena.
FOLHA - Há alguma preocupação
com o período eleitoral?
CARLOS - Não chega a ser um
problema, não pela audiência.
Não vou tocar em assuntos que
possam ser aproveitados eleitoralmente. Quando falei da
bala perdida, todo mundo se incomodou. Não posso favorecer
nem desfavorecer.
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