São Paulo, domingo, 02 de julho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Tratamento de choque

Manoel Carlos pretende abordar preconceitos de modo chocante e "conscientizar" o público de "Páginas da Vida", que estréia dia 10

Marcio de Souza/TV Globo
Cena de arrastão gravada no Rio, após batalha para conseguir autorização da prefeitura, para a nova novela das oito da Globo


MARCELO BARTOLOMEI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DO RIO

O que começa como um bate-papo sobre o clima no café da manhã, um comentário sobre um livro ou uma conversa fiada no elevador parece uma simples visão do dia-a-dia em "Páginas da Vida", nova novela das oito da Globo, que estréia no dia 10. Não para o autor Manoel Carlos, 73, que escreve cenas para ilustrar a vida de mais de 80 personagens, alguns envolvidos em tramas polêmicas. A idéia é fazer com que o público, primeiramente, se identifique com os personagens, para depois soltar uma "bomba" sobre aquelas vidas aparentemente felizes. Chocar para conscientizar, diz o autor. A novela baterá forte no preconceito a portadores de deficiência, desta vez uma criança com síndrome de Down que será rejeitada pela família, e em um soropositivo que será expulso de um hospital católico. Reclamações já surgiram. Para gravar as cenas de um arrastão para o primeiro capítulo, a produção travou uma batalha com a Prefeitura do Rio. À Folha, Manoel Carlos fala da violência no Rio, cidade que adotou desde 1971, e comenta a necessidade de provocar.
 

FOLHA - Como surgiu "Páginas da Vida"?
MANOEL CARLOS -
Minhas novelas, na verdade, são muito antigas. Coleciono histórias. Quando fiz "Laços de Família", já tinha "Mulheres Apaixonadas". Quando a fiz, foi um risco por fazer várias histórias importantes correrem ao mesmo tempo. Fiz vários núcleos, cada um com um protagonista. Desta vez extrapolei, tenho umas 15 histórias importantes.

FOLHA - O sr. criou uma nova narrativa para novelas então?
CARLOS -
A mim cansa muito escrever uma novela. É preciso haver um certo encantamento em cada uma que eu faço. Senti necessidade de fazer uma transformação na minha maneira de fazer novela e encontrar nisso um novo estímulo. Não me preocupo teoricamente. É um fazer fazendo. Entendo que uma mulher que viva num apartamento tenha vizinhos, porteiro, parentes, que ande pela rua e conheça o jornaleiro e o dono da padaria. Essas pessoas todas são personagens, não figurantes.

FOLHA - A TV precisa de realidade?
CARLOS -
Eu me preocupo com isso, não sei se é uma demanda da TV. Alguns autores repudiam a realidade. O problema da ficção é que precisa fazer sentido; a realidade, não. Procuro fazer uma ficção verossímil, viável e sem grandes discrepâncias. Quando converso com as pessoas, pergunto se estão acreditando no que estão vendo. Coloco isso para diretores e atores, gosto que eles vivam os personagens. Eles têm nome, sobrenome e signo. É tudo muito trivial, não é delirante. As chagas sociais são inesgotáveis, ainda mais no Brasil.

FOLHA - As cenas do arrastão na praia já provocaram polêmica...
CARLOS -
A novela nem começou e já causou comoção. A história começa em 2001, quando ocorriam arrastões, mas é apenas um grupo de rapazes que corre pela praia para roubar uma bolsa e um celular e provoca pânico. O prefeito se manifestou dizendo que não existem mais esses arrastões. É verdade. Há muito tempo não se vê um arrastão, felizmente. A violência me preocupa, pois tenho filhos e netas.

FOLHA - Quais temas o sr. prevê que vão incomodar mais?
CARLOS -
A polêmica que acho que mais vai mexer com o espectador será positiva, que é sobre a síndrome de Down. Minha intenção é mostrar tudo o que cerca as crianças portadoras, como a inclusão e a exclusão. Isso vai gerar muita polêmica porque há dois grupos fortes e atuantes no país. Não tenho partido. Conversando com as pessoas que têm o problema -e nunca imaginei que fossem tantas-, vi que será uma discussão benéfica. Há famílias que tiram as crianças da sala quando chega uma visita. O número de casamentos que se desfaz é muito grande. O homem, normalmente, não agüenta a barra, se isola e fica infeliz. Na escola, é um problema igualmente grave. Se você coloca uma criança portadora de Down numa escola normal, todas as crianças a recebem bem, mas os pais reclamam. Com toda sinceridade, não sei o que faria se tivesse um filho especial. É preciso chocar, senão não funciona. Os portadores são invisíveis e preservados.

FOLHA - A novela também falará de Aids. A igreja se manifestará?
CARLOS -
Por quê? A igreja sempre cria problemas, mas eu sou católico fervoroso e fui criado em colégio de padres quando adolescente. A polêmica pode ser por conta do hospital receber um paciente sem saber que ele é soropositivo. Uma noviça cuida especialmente dele, que se apaixona por ela. Eu ainda não decidi como ela corresponderá a isso. Quando ela descobre, ela o esconde. O hospital não tolera isso, e eu já vi acontecer na vida real. Não sei ainda se ela abandonará o hábito para ficar com ele. Usarei a Aids para chamar a atenção para o que percebi ser uma baixa de guarda. Acho que as pessoas voltaram a fazer sexo sem segurança. Me preocupo com esse tipo de abordagem. Não será nada escandaloso, pois sei que é preciso conscientizar.

FOLHA - É a terceira vez que Regina Duarte faz uma Helena. Por que ela?
CARLOS -
Tenho uma longa história com ela. É uma atriz impecável, sou seu grande admirador. Ela tem disciplina, segurança e me passa uma grande tranqüilidade no trabalho. Escrevi "Malu Mulher" [1979] para ela. Conheço os seus recursos e nos entendemos muito bem. Ela está numa faixa de idade [59 anos] que me interessa muito focar e escrever. Gosto de escrever para essa faixa de idade, de gente de mais de 40 anos. Essa faixa tem grandes histórias para contar: passaram por desilusões, enganaram, foram enganadas, sofreram perdas e casaram os filhos. Na minha cabeça, somente a Regina poderia fazer esta Helena.

FOLHA - Há alguma preocupação com o período eleitoral?
CARLOS -
Não chega a ser um problema, não pela audiência. Não vou tocar em assuntos que possam ser aproveitados eleitoralmente. Quando falei da bala perdida, todo mundo se incomodou. Não posso favorecer nem desfavorecer.


Texto Anterior: Horário nobre na TV aberta
Próximo Texto: Mônica Bergamo
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.