São Paulo, quarta-feira, 02 de julho de 2008

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MARCELO COELHO

Passeio pelo Burasiro


Como o sertão de Guimarães Rosa, seria o caso de dizer que Japão e Brasil estão em toda parte

APESAR DAS MUITAS homenagens aos cem anos da imigração japonesa, fiquei com a sensação de que ainda vai demorar um bocado até que se conheçam realmente todos os pontos de contato entre as culturas do Brasil e do Japão.
Para mim, pelo menos, a mostra "Laços do Olhar", em cartaz no Instituto Tomie Ohtake até 10 de agosto, foi uma sucessão de surpresas. O curador Paulo Herkenhoff não se limitou a fazer apenas um recenseamento das obras de artistas nipo-brasileiros. Muitas coisas nessa exposição, que diríamos brasileiríssimas, foram como que traduzidas, transfiguradas, para o universo da cultura japonesa.
Cito um exemplo de impacto instantâneo. Algumas fotos de uma luta ritual de índios do Xingu são colocadas ao lado de imagens de lutadores de sumô. Seria disparate falar em "influência" dos índios sobre o Japão ou vice-versa. Na prática, há apenas uma coincidência impressionante de atitudes corporais.
Mas aí intervém essa palavrinha, que tem sido utilizada de um modo meio pretensioso ultimamente: o "olhar". Na mostra do Instituto Tomie Ohtake, o termo não poderia ser mais adequado. É como se determinada realidade pudesse ser "japonesa" ou "brasileira", conforme o modo como olhamos para ela.
Dois retratos a lápis de Ismailovitch, quase fotográficos em sua perfeição, surgem em outra parede. Quem é o japonês? Quem é o mulato ou o índio? Poderiam ser irmãos. E tanto um cristão como um budista, ou um judeu, podem perguntar: "Mas não são?".
As semelhanças nem sempre são tão óbvias. Uma escultura abstrata, branca, deitada no chão, desenvolve um movimento curvo, feito de minúsculos cubos que se elevam uns sobre os outros, e descem em seguida, subindo de novo até cair a nossos pés. É uma bela escultura. Mas já estamos impregnados de Japão, e o que se pode ver ali é uma tradução austera, "brasiliense", da célebre onda gigante de uma gravura de Hokusai.
Dois quadrinhos de Mira Schendel, com rabiscos minúsculos sobre papel fino, de repente se tornaram compreensíveis para mim: são ideogramas! Ou, talvez, memórias de ideogramas, como um poema abandonado ao mar.
Mas a exposição não fica só no plano das aproximações subjetivas. Há muita documentação histórica também. Recortes e mais recortes de jornal contam a viagem do crítico Mário Pedrosa ao Japão, em 1958.
Ficamos sabendo que Eliseu Visconti (1866-1944), em plena "belle époque" brasileira, colecionava estampas japonesas. Claro que da mostra também fazem parte alguns quadros de Manabu Mabe, Tomie Ohtake, Yoshiya Takaoka. Mas a origem étnica, como nunca é demais lembrar, é irrelevante em si mesma; certas paisagens urbanas da década de 40, feitas por imigrantes japoneses (há belíssimas também numa mostra na Pinacoteca do Estado) podem ser confundidas com as pinturas da mesma época feitas por gente de sobrenome italiano ou espanhol: Mick Carnicelli, Rebolo, Zanini.
Como o sertão de Guimarães Rosa, seria o caso de dizer que o Japão (e o Brasil) estão em toda parte. O que não significa, é claro, dissolver as características de cada cultura numa espécie de insosso caldo universal. Tendemos a oscilar entre uma visão muito estreita e "preservacionista" das identidades culturais (veja-se a luta contra o uso de palavras de origem inglesa, por exemplo) e uma espécie de elogio igualmente "patriótico" da mistura e da mestiçagem, que tenderia, no limite, à abolição das diferenças num grande ecletismo pós-moderno ou numa eufórica bagunça tropicalista.
A exposição "Laços do Olhar" sugere outra coisa: as diferenças culturais existem, mas não são propriedade de ninguém. Antigamente, os brasileiros de elite se esforçavam em falar francês ou inglês sem sotaque nenhum. A cultura brasileira ficou mais forte, sem dúvida, quando um "sotaque brasileiro" pode ser reconhecido em toda parte.
O sotaque não é só um jeito de falar. Há jeitos de olhar as coisas, de ler um livro, de viver a vida, que são sotaques também. Cada indivíduo tem o seu; mas todo país pode ser refeito e "redito" na linguagem de outro. Depois da exposição no Instituto Tomie Ohtake, saí vendo um outro país, que é o Brasil em que sempre vivi. Mas aprendi a chamá-lo de outro jeito: digamos, Burasiro.

coelhofsp@uol.com.br


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