São Paulo, Segunda-feira, 02 de Agosto de 1999
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FERNANDO GABEIRA

A radical humanidade de frei Tito de Alencar

Nosso carro avançava pela rua Toneleros, em Copacabana, quando minha filha apontou para o quartel. "Gosto muito daquela frase: "Somos bombeiros, nada do que é humano nos é indiferente'", disse.
Comentei rapidamente aquilo. A frase era mais antiga do que o quartel dos bombeiros. E não se pode esquecer os bichos e as plantas. Ela respondeu: "Ah, quer dizer que alguém já falou isso antes? Mas não se esqueça de que os bombeiros também salvam bichos".
A conversa morreu quando entramos na orla da Lagoa. A imagem de frei Tito de Alencar me veio à cabeça. Fui convidado para falar na missa que celebra os 25 anos da morte de frei Tito. Ele suicidou-se na França, em 1974, alucinado com os fantasmas da tortura que sofreu no Brasil.
Eu o vi na Operação Bandeirantes, em 1970, e já naquela época tentou cortar os pulsos para escapar do sofrimento e humilhação dos torturadores. Foi um dos momentos mais impressionantes de minha passagem pela prisão.
Sinto-me ligado ao martírio de frei Tito não só porque vivemos a mesma experiência política, passamos pela mesma cadeia, terminamos num mesmo exílio europeu. Sinto-me ligado a ele porque sempre tentei explicar a mim mesmo seu suicídio, e jamais consegui. Como se os fantasmas da tortura e do suicídio tivessem a capacidade de permanecer em nossas cabeças sem que jamais os expliquemos satisfatoriamente.
Frei Tito morreu no interior da França. Suas crises o levaram a buscar um trabalho manual. Ele plantava e colhia legumes em uma horta, vivia num quarto modesto, escrevia poesias no final da jornada.
Se tivesse que explicar à minha filha por que morreu frei Tito de Alencar, iria aproveitar aquela frase. Nada do que é humano era indiferente para ele. Daí a enorme dificuldade em integrar a tortura e a crueldade que sofreu na cadeia na idéia do ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus.
Se os torturadores são humanos, algo deles existe em nós. A saga dos que viviam de dar choques elétricos, ameaçar colocar crianças no pau-de-arara , romper tímpanos e a auto-estima estará para sempre inscrita na história do gênero humano. A partir dessa experiência radical, a visão da humanidade nunca mais será a mesma.
Arthur Miller, creio que em "Depois da Queda", mostra um personagem visitando um campo de concentração, já desativado, e se perguntando se depois daquilo a poesia ainda era possível. Frei Tito talvez se perguntasse se a própria vida ainda era possível. Seus versos indicavam que essa hipótese dependeria do extermínio das "lembranças de um passado sombrio".
Não só a metafísica, mas também a poesia e a literatura entraram em parafuso quando se revelaram os segredos dos campos de concentração. A resposta de alguns para esse impasse talvez possa contribuir para que se entenda a trajetória de frei Tito.
De certa forma, creio que ele conseguiu a redenção. Não a social nem a religiosa, mas a redenção sendo essa energia que passa pelos tempos e faz você olhar sua filha, 25 anos depois da morte, e ter vontade de lhe contar histórias de pessoas como frei Tito e outras maravilhosas figuras da resistência que se mataram, no exílio ou no Brasil. Pessoas que de forma dramática viveram, radicalmente, a questão enunciada no quartel dos bombeiros: "Nada do que é humano me é indiferente".




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