São Paulo, domingo, 02 de setembro de 2007

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Na casa de Gabo

Quarenta anos depois do lançamento do livro "Cem Anos de Solidão" e 80 anos do nascimento de Gabriel García Márquez, a cidade colombiana de Aracataca entra em debate sobre o legado do escritor

Daniel Muñoz - 30.mai.2007/Reuters
O escritor Gabriel García Márquez chega de trem a Aracataca, em maio, depois de mais de 20 anos sem visitar sua cidade natal


SYLVIA COLOMBO
ENVIADA ESPECIAL A ARACATACA (COLÔMBIA)

Na praça principal da pequena Aracataca, um estabelecimento de esquina, paredes de madeira pintadas de vermelho, exibe os dizeres: "Bar Liberal: Aqui esteve o coronel Aureliano Buendía". A referência a um dos personagens centrais de "Cem Anos de Solidão" (1967), o militar solitário que "promoveu trinta e duas revoluções armadas e perdeu todas", é apenas uma entre as tantas que saltam aos olhos quando se caminha hoje pela cidade natal de Gabriel García Márquez, 80.
Aracataca, localizada ao norte da Colômbia, na província caribenha de Magdalena, foi fonte de inspiração para quase tudo que o escritor criou para construir Macondo, aldeia imaginária onde se passa o clássico que lhe garantiu o Nobel de Literatura em 1982.
Num ano de tantas efemérides ligadas a Gabo, 80 anos de nascimento, 25 desde o Nobel, e 40 do lançamento de "Cem Anos", o povoado debate sobre como homenagear o escritor.
Trata-se de uma região pobre, que teve seu apogeu nos anos 20/30, quando plantações de banana chamaram a atenção de empreendedores norte-americanos. Hoje, a cidade vive ainda da banana, do comércio regional, e atrai turistas literários que querem conhecer as cores do mundo de Gabo.

"Limbo de sopor"
Sob sol inclemente -a temperatura média é de 28ºC- , que castiga os olhos e dá a impressão de que "as casas flutuam em um limbo de sopor", nas palavras de Gabo, é possível distinguir os tipos humanos que deram origem aos personagens de "Cem Anos de Solidão".
Donas-de-casa de ar resignado, homens sentados nas praças com olhar solitário, crianças barulhentas na saída das escolas. Não há nada que não se veria em outro povoado semelhante, no interior do Nordeste brasileiro, por exemplo.
O que diferencia Aracataca é apenas (apenas?) o fato de que, a partir das lembranças de seus primeiros oito anos de vida passados lá, Gabo inventou um universo único e fantástico.
Na biografia "Viver para Contar" (2002, Record), o escritor relata esse episódio de transformação. Nos anos 50, quando já era um jovem aspirante a escritor vivendo em Barranquilla, Gabo viajou com a mãe de volta para Aracataca.
A família, de poucos recursos, tinha que colocar à venda a casa onde ele vivera com os avós e um monte de tias. Foi então que, ao descer na estação do trem, o escritor percebeu que daquela aldeia sairia uma grande parte de sua literatura.
"Não havia uma porta, uma fenda de um muro, um rastro humano que não despertasse em mim uma ressonância sobrenatural", conta o Nobel.
Pois hoje é justamente a casa em que ele passou a infância o principal motivo de discórdia entre os que disputam seu legado neste ano de homenagens.
Desde que foi vendida pelos García Márquez, a casa sofreu várias alterações em sua estrutura. Quartos foram ao chão e paredes foram derrubadas. Do local onde sua mãe lhe deu a luz, só sobrou um piso de cimento com a placa: "Aqui nació Gabriel Garcia Márquez".
O Ministério da Cultura da Colômbia está reformando o local, que vai virar museu até o final do ano. O próprio Gabo -que hoje se trata de um câncer no México- deu aval para uma proposta que mistura a reconstrução de parte da estrutura original da casa com espaço para exposição de objetos.
Já o prefeito, Pedro Sanchez, quer transformar o espaço em atração turística, com lojas e estrutura para receber mais viajantes. "É preciso explorar a imagem dele, no bom sentido", disse à Folha.

Plebiscito
No começo do ano, Sanchez promoveu um plebiscito para tentar mudar definitivamente o nome da cidade, de Aracataca para Macondo. A população rechaçou, mas ele segue com seus planos. "Temos que fazer com que Gabo seja notícia sempre, é isso que interessa", diz.
A família do escritor, por sua vez, insiste que a casa seja reconstruída exatamente como era na infância do autor. "Uns querem ver a casa dos Buendía, outros a dos García Márquez, mas transformar o local num museu, que dialogue com os personagens e os livros dele, é o melhor que se pode fazer por sua obra", diz Alberto Abello Vives, da Universidad Tecnológica de Bolívar, autor do script da mostra.
Enquanto isso, funciona como museu improvisado a chamada Casa do Telegrafista, local onde o pai do autor -que era telegrafista- trabalhou quando chegou a Aracataca. Ali estão algumas fotos amareladas, certidões de casamentos e mortes da família e recortes de jornais. A precariedade e o vento das tempestades de fim de tarde estão causando uma verdadeira erosão no conjunto.
Coincidência ou não, é inevitável uma irônica analogia com o que acontece nas últimas páginas de "Cem Anos", quando Macondo vai virando pó no meio de um redemoinho.

A jornalista SYLVIA COLOMBO viajou a convite da Proexport Colombia


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