São Paulo, domingo, 02 de setembro de 2007

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FERREIRA GULLAR

Os chineses vêm aí


A tendência é que o número de passageiros aumente, que o número de vôos se multiplique

EU, QUANDO jovem, achava que avião não caía. Tanto cria nisso que embarquei, irresponsavelmente, aos 20 anos, num bimotor rumo a Amarante, no Piauí. De São Luís até lá, naquela época e naquele bimotor, eram várias horas de vôo, contando a descida em Teresina. Na última etapa da viagem, um dos motores do avião tossiu, tossiu e parou. Olhei pela janela a hélice imobilizada, mas não me incomodei, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo, e era; uma vez sãos e salvos, aterrissamos em Amarante, de onde, após cruzar o rio Parnaíba, segui para Bastos Bons.
Meses depois, finda a campanha eleitoral -razão daquela viagem-, fiz o mesmo trajeto, de volta, e desci no aeroporto do Tirirical com a mesma tranqüilidade daquele índio do Xingu que adorava viajar no avião da Funai. Contam que, certo dia, viu lá do alto os restos de um deles no chão da floresta e perguntou ao piloto o que era aquilo.
-Um avião que caiu.
-E avião cai?!, indagou o índio, aterrorizado.
-Claro que cai.
E o índio:
-Me tira daqui! Me tira daqui!
Já eu só tomei conhecimento de que avião caía quando perdi um amigo que era poeta e piloto de teco-teco, mas nem por isso me tomei de medo de voar. E isso naquela época, quando a ciência aeronáutica ainda não conquistara a sofisticação dos dias atuais. No Brasil, além da Panair, havia o Lóide Aéreo, a companhia de passagens mais baratas, e foi nele que vim. Numa viagem de dez horas ou mais, para o Rio, que era então a capital política e cultural do país. Não me dava conta do risco.
Isso foi só o começo. Após alguns anos viajando entre a praça da Cruz Vermelha e Ipanema, um dia levantei vôo em direção à lendária Europa e, inacreditavelmente, dei por mim caminhando pelas galerias do Louvre, nas salas da Maison de Rodin, Galeria Ufizzi, Palazzo Vechio... Paris, Madri, Toledo, Roma, Veneza, Florença. Não lembro o tempo que levei voando sobre o Atlântico, tanto na ida quanto na volta, quando os aviões eram bem mais lentos.
Chegou, porém, o momento em que passei de turista a foragido, e, tampouco na nova fase, as viagens aéreas me deixavam tenso e preocupado. Uma bela tarde, aterrissei na pista do Sheremetyevo, em Moscou, nas asas da Aeroflot. A volta para a América do Sul, até Ezeiza, quase dois anos depois, foi demorada, mas sem sustos. Também sem sustos foram os vôos para Santiago do Chile, depois para Lima e finalmente para Buenos Aires, onde me fixei. Susto mesmo foi, em 1977, quando decidi voltar para o Brasil: susto, não no ar, mas em terra, no guichê de verificação de passaportes, onde estava escrito "Ferreira Gullar ou José de Ribamar Ferreira, prender".
Todo esse papo -não diria furado, mas inflado- é para descobrir em que momento de minha vida tomei consciência "pânica" de que avião cai, mas vejo que a coisa não se deu de repente e que veio se infiltrando em minha consciência, até a recente viagem a Madri quando só não me joguei para fora da aeronave porque, felizmente, não havia como.
Mas nem por isso -ou talvez mesmo por isso- deixo de pensar no futuro que vos espera, já que estou fora dessa. É gente demais viajando de avião! Só no aeroporto Heathrow, de Londres, passam 70 milhões de passageiros por ano... Os aeroportos crescem sem parar, a tal ponto que, em alguns, não dá para se deslocar a pé, usam-se viaturas. Vão se tornando microcidades, de trânsito e tráfego intensos. Porque o número de vôos aumenta a cada dia, as pistas de pouso crescem em número e tamanho. Em alguns aeroportos, o avião, depois de pousar, leva meia hora para chegar à estação de desembarque. Recolher a bagagem é outro sofrimento. Depois de passar horas voando, o passageiro, exausto, tem que esperar às vezes uma hora ou mais para pegar as malas, isso se nenhuma delas se perdeu no caminho. É que há gente demais viajando, bagagens demais sendo transportadas, e a infra-estrutura dos aeroportos não tem como dar conta da tarefa.
A tendência é que o número de passageiros aumente ano a ano, que o número de vôos se multiplique para poder transportá-los. E que atrasos e acidentes também se multipliquem. Já hoje todo e qualquer aeroporto é estressante. Se não é o caos aéreo do Brasil, é o medo dos terroristas que obriga o exame minucioso das bagagens e dos passageiros, que têm de tirar até o cinturão das calças. A possibilidade de explodir uma bomba em pleno vôo acaba com o bom astral de qualquer turista.
Já imaginou quando uns 500 milhões de chineses começarem a fazer turismo também?


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