São Paulo, terça-feira, 02 de setembro de 2008

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Contra os colunistas


Tudo isso para quê? Para sermos lidos em cinco minutos com o café da manhã

TODAS as semanas, leitores vários, normalmente jovens, normalmente estudantes, normalmente universitários, escrevem-me com demanda existencial: como ser colunista, Coutinho? Eles desejam seguir as pegadas dos nomes que lêem nos jornais porque imaginam, ou suspeitam, que não existe maior privilégio ou prazer do que expor a cabeça em público.
Respondo com clichês; faço piadas; minto; por vezes, Deus me perdoe, encorajo; mas nunca digo a verdade.
E a verdade é simples: colunismo é doença.
Eu juro que não sabia. Eu juro que era como eles, mais de dez anos atrás: idealista, sonhador, facilmente corrompível, imaginando dias perfeitos em que estaria só com as minhas idéias e opiniões. E uma página branca na qual escrevê-las.
Ninguém me disse que os dias não são perfeitos quando estamos sós com as nossas idéias e opiniões. Começamos por sacrificar alguma coisa: lugares que não visitamos, amizades que não vemos, amores que vamos adiando e a vida propriamente dita que não vivemos. Mas que passa lá fora, indiferente às nossas divagações.
A solidão cresce. E, com a solidão, vem a angústia crescente de quem procura assunto, semana após semana, dia após dia, hora após hora, como um caçador ansioso e furtivo.
O problema é que a presa nem sempre vem; e nós, gelados e parados pela ausência da musa, contemplando a página em branco, nossa mortalha privada. Tornamo-nos cínicos, tão cínicos que até rezamos para que o mundo corra mal, a única forma de nos darmos bem. Como o demônio, só reinamos no caos e no inferno.
Somos Sísifo, somos a pedra que ele arrasta montanha acima, montanha abaixo, incapazes de desistência ou descanso. Quando desligamos o laptop, a cabeça continua a pleno vapor, escrevendo crônicas imaginárias ao mínimo sinal de alarme. A vida não é a vida. É sempre pretexto. É sempre contexto. É sempre texto.
Mas não é apenas a angústia que cresce. É a paranóia. O ego aumenta.
A vaidade também. Somos meros colunistas? Nada disso: como diria o poeta, somos nós os verdadeiros legisladores do universo. E acreditamos sinceramente que todos os problemas do mundo teriam solução se ao menos nos perguntassem como.
Tornamo-nos facilmente intolerantes e irascíveis. Arrogantes? Pior: arrogantes e vulneráveis. Reclamamos de incompreensões imaginárias. Todos os editores são inimigos declarados porque não entendem o que só nós entendemos, ou seja, que ninguém nos entende. Ninguém nos ama. Ninguém nos venera.
Exigimos mais espaço. Exigimos mais destaque. Exigimos lide na primeira página. Queremos, aliás, que o jornal mude de nome para acomodar o nosso nome. Folha de S. Paulo? O diabo. "Folha de S. Coutinho". E, quando o colunista do lado escreve prosa admirável, nós jamais aplaudimos. Adoecemos de inveja, fustigamos os nossos neurônios por não termos pensado primeiro. E desejamos secretamente que ele morra atropelado. E tudo isso para quê?
Eu digo-vos para quê: para sermos lidos em cinco minutos com o café da manhã; para despertarmos risos, tédios, concórdias ou discórdias em gente anônima que jamais conheceremos; e, com alguma sorte, para acabarmos o dia abandonados e esquecidos, forrando o banheiro do gato.
Todas as semanas, leitores vários, normalmente jovens, normalmente estudantes, normalmente universitários, escrevem-me com demanda existencial: como ser colunista, Coutinho?
Respondo a única resposta possível: não sejam. Estudem. Sejam médicos, professores, economistas. Artistas. Empresários. Sejam decentes. Coerentes. Sociáveis, saudáveis, equilibrados. Úteis.
Nunca deslumbrados.
Porém, se no final de tudo isso a ambição da crônica persistir; se persistir ainda a pretensão infame e doentia de escrever e partilhar; se sentirem que a vida não faz sentido sem palavras vossas, e não simplesmente alheias; se suspeitarem de que a solidão da escrita vos é insuportável, mas deliciosamente insuportável; se não temerem uma existência efêmera, como certas borboletas, nascendo e morrendo em 24 horas; e se amarem o jornalismo, e os jornais, com a ingenuidade própria dos verdadeiros amantes, então nada mais vos tenho a dizer. Saiam daqui. Desapareçam. E arruínem as vossas existências à vontade. Eu não serei culpado de nada. Serei apenas vosso leitor com o café da manhã. E, quando a noite vier, vocês serão o banheiro infecto do meu gato.

jpcoutinho@folha.com.br


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