São Paulo, Quinta-feira, 02 de Setembro de 1999
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GOSTEI
Fácil de admirar e difícil de amar

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Pouco após a projeção para a imprensa de "De Olhos Bem Fechados", alguém da platéia se perguntava: "Mas será que eu vou ter vontade de ver esse filme pela terceira vez?".
A pergunta resume um sentimento sobre quase toda a obra de Stanley Kubrick, e vale também para este seu último trabalho. O gênio desse cineasta é evidente.
Quantos mais colocariam uma estrela como Nicole Kidman sentada em uma privada? Ou faria um galã como Tom Cruise contracenar com mulheres invariavelmente mais altas do que ele? Poucos.
Qual diretor de cinema é capaz de mover a câmera com o steadycam (aparelho introduzido por ele em "Barry Lindon", em 1975) com tanta segurança, desenvoltura e discrição? Nenhum.
E quem colocaria o Casal 20 de Hollywood (Kidman e Cruise, justamente) numa situação delicada como esta: Kidman (Alice Harford), casada com Cruise (Bill Harford) há nove anos, fuma um baseado e abre o jogo sobre a paixão fulminante que sente por um homem que só viu uma vez? E Bill, até ali visto como um médico exemplar, simpático, íntegro -isto é, superficial como um príncipe de conto de fadas-, lança-se, meio desarvorado, em uma estranha aventura noturna.
Não sabemos em que dimensão estamos. A trama é uma espécie de "Alice no País das Maravilhas" vivido a dois. Um sonho que pode ser real. Uma realidade que pode não passar de pesadelo. Ambos.
O certo é que nessa dimensão todos nos reconhecemos como seres mascarados; vivemos -e mostramos aos outros, inclusive aos mais próximos- aquilo que não somos intimamente (embora nada leve a crer que "aquilo que não somos intimamente" seja mais verdadeiro ou relevante do que a parte de nós que se deixa ver publicamente).
Voltando à questão lançada pelo espectador: de fato, não dá para saber se vamos querer ver o filme pela terceira vez.
Mas será preciso vê-lo pelo menos pela segunda vez, pois assim o exige o gênio de Kubrick. A maneira como fecha o quadro em seus personagens, como cada momento se faz relevante, vital, torna obrigatória a admiração (e, portanto, a revisão).
Mas os filmes que assistimos infatigavelmente, três, quatro, dez vezes, são filmes que amamos, e talvez esteja aí o problema do cinema de Kubrick. Ele se deixa muito mais admirar do que amar.
Mesmo quem não gostou de seu "Lolita", por exemplo, reconhecerá instantaneamente seu gênio ao ver o patético "remake" perpetrado há pouco por Adrian Lyne. Ok, a comparação, no caso, é covarde: em Kubrick não há um fotograma sequer que se possa chamar de vulgar. Em Lyne, tudo é vulgar: a luz, o som, os enquadramentos, os atores (nem Jeremy Irons resiste ao massacre).
Em "De Olhos Bem Fechados" há inúmeras sequências inesquecíveis: a garota de programa que quase morre de overdose; a moça que declara sua paixão pelo médico junto ao corpo do pai, recém-morto; a visita de Tom Cruise a uma loja de fantasias; a bacanal dos mascarados; um homem que segue Cruise pela rua etc.
Tudo isso poderia sofrer de uma sobrecarga onírica (pecado de "After Hours", de Martin Scorsese, que está muito longe de ser um incompetente). Mas não. Tudo nos parece perfeitamente real. Real como um sonho é real. Essa a magia incontestável do filme.
Não é só: um simples diálogo, o mais banal do mundo, entre marido e mulher, ganha realce pelas mãos de Kubrick. É fácil compreender o adjetivo "perfeccionista", lugar-comum inescapável a respeito de seu cinema. Kubrick é profundo, por vezes frio, como se contemplasse o espetáculo do humano e suas precariedades à distância. Não do alto, como se não estivesse implicado nele, mas a uma distância que não deixa dúvidas quanto a seu desgosto: é admirável.
Mas é como se isso roubasse do cinema essa ponta de vulgaridade, de espetáculo bastardo, que está em suas origens e que habita todo homem, tanto quanto as fantasias que vivem os personagens de "De Olhos Bem Fechados".
Um filme admirável e enigmático, cujo gênio, de alguma forma, nos soterra e afasta dele. Filme que não se pode deixar de rever. Mas que, como quase todos os outros de Kubrick, seja pelo que tem de aflitivo ou de extremamente cerebral, não se deixa amar.


Avaliação:     


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