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CONTARDO CALLIGARIS
No último Kubrick, não leve as crianças
Estréia amanhã o último filme
de Kubrick, "De Olhos Bem Fechados". O título original, "Eyes
Wide Shut", é um trocadilho. Sua
tradução literal seria: "De Olhos
Arregaladamente Fechados". Como se, de tanto arregalar os olhos,
não desse para ver mais nada.
Não sei por que Kubrick inventou esse título. Mas ele é, de qualquer forma, emblema do que vem
acontecendo com a representação
do sexo no cinema: ganhamos,
enfim, livre acesso aos vestiários
masculinos e femininos, escutamos as conversas e vemos livremente os corpos. É engraçado, pode até ser excitante, mas ficamos
por conta. Pois o sexo, de fato,
não é feito nem de piadas nem de
bundas. Sexo é um jogo de fantasias, nem sempre claras, cômodas
ou confessáveis.
Ora, o filme de Kubrick é um filme sobre sexo. Por isso, aliás, não
está garantido que encontre seu
público. Parece que nos acostumamos à simplificação infantil
da sexualidade: piadas e bundas.
Há, para tal, uma explicação de
marketing. Nos anos 90, os adolescentes e pré-adolescentes se tornaram público-alvo de um número cada vez maior de filmes.
Hollywood aprendeu que os jovens têm mais dinheiro no bolso,
gostam de ir ao cinema e levam os
adultos consigo, estabelecendo e
promovendo modas.
Os adultos adoram pegar onda
com a rapaziada. Portanto, a representação do sexo no cinema se
aproximou da que os adolescentes conseguem tolerar: barulhenta, mas fundamentalmente reprimida. Os palavrões, a vulgaridade (em breve, o barulho), servem
para silenciar desejos e fantasias.
Este infantilismo sexual não é
só efeito da chegada dos adolescentes no mercado da cultura. É
também o refluxo dos anos 60. No
burburejar da revolução sexual,
parece que o cinema conseguiu
encarar milagrosamente a complexidade do sexo. E isso para
platéias que de alguma forma se
reconheciam nele.
Entre 67 e 73, foram filmados,
por exemplo, "A Primeira Noite
de um Homem", "Perdidos na
Noite" e "Último Tango em Paris". Desde então, os filmes sobre
sexo se tornaram mais raros.
Com a exceção (notável) da obra
de Almodóvar e de alguns filmes
em que o sexo aparece, mas com a
desculpa de ser uma obsessão patológica (tipo "9 Semanas e 1/2 de
Amor"), o cinema de grande público oferece desbunde, nudez e
vulgaridade, mas não sexo.
O que aconteceu? Deveria se esperar que a revolução sexual permitisse olhar para o sexo em sua
complexidade, às vezes soturna.
Ora, parece que, em vez de abrir
os olhos, nós os arregalamos, o
que pode ser uma maneira de fechá-los. O sexo sumiu por baixo
de uma caricatura festiva. A liberação sexual veio junto com uma
recrudescência da ideologia higienista da vida: querem seus corpos para com eles livremente explorar prazeres? Podem, mas que
sejam corpos saudáveis. Ou seja,
querem gozar? Aqui está: cooper,
aeróbica, muito sol (agora com
protetor) e abaixo o colesterol.
O sexo liberado projetava uma
orgia e acabou se parecendo com
uma festa de cruzeiro durante as
férias obrigatórias. A manteiga
do "Último Tango em Paris" se
tornou margarina dietética.
No filme de Kubrick há justamente uma cena de orgia que foi
muito discutida. Por um lado, críticos e intelectuais (até no Brasil)
se indignaram porque, a fim de
evitar que o filme fosse classificado pornográfico, 65 segundos de
película foram manejados eletronicamente para esconder órgãos
sexuais copulando. Gritos de horror contra a censura. Os brasileiros podem ficar sossegados: no
Brasil o filme será exibido na íntegra.
Mas vale lembrar que uma verdadeira censura sobre o sexo começa a funcionar quando pensamos que o sexo seja isso: pênis e
vaginas expostos. Quem se preocupou com a ausência de órgãos
eretos ou ficou esperando para
ver se Cruise e Kidman transariam, pois bem: ficou de olhos arregaladamente fechados. De tanto querer ver, não viu nada.
Por outro lado, há a crítica frequente de que a cena da orgia seria triste, ritualizada. Caramba!
Parece que a idéia mais comum
de orgia é a caricatura do set de
um filme pornográfico onde todos
transam "legal", com muita luz e
bom humor. Ou então, pior ainda, um clube de troca de casais,
no qual um organizador do Club
Mediterranée anima um bingo
para quebrar o gelo.
Será que ainda há público para
um filme adulto sobre sexo? Espero que sim. Deixe as crianças em
casa. Deixe em casa também a
criancice. E curta um filme que
tenta levar o sexo a sério.
P.S. 1 - A escolha de Cruise e Kidman não é erro: eles são perfeitos
por serem a imagem de um casal
água-com-açúcar. Não transpiram sexo, não são Bruce Willis e
Kim Basinger. Mas é esse o ponto:
eles são um casal "copo-de-leite-bom-pra-saúde" e vão encontrar,
de repente, dentro de si, alguns
sonhos mais cabeludos.
2. Por favor: o filme não é uma
história de ciúme. Salvo no sentido em que o ciúme é um vasto repertório de fantasias eróticas.
Email: ccalligari@uol.com.br
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