São Paulo, Quinta-feira, 02 de Setembro de 1999
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CONTARDO CALLIGARIS
No último Kubrick, não leve as crianças

Estréia amanhã o último filme de Kubrick, "De Olhos Bem Fechados". O título original, "Eyes Wide Shut", é um trocadilho. Sua tradução literal seria: "De Olhos Arregaladamente Fechados". Como se, de tanto arregalar os olhos, não desse para ver mais nada.
Não sei por que Kubrick inventou esse título. Mas ele é, de qualquer forma, emblema do que vem acontecendo com a representação do sexo no cinema: ganhamos, enfim, livre acesso aos vestiários masculinos e femininos, escutamos as conversas e vemos livremente os corpos. É engraçado, pode até ser excitante, mas ficamos por conta. Pois o sexo, de fato, não é feito nem de piadas nem de bundas. Sexo é um jogo de fantasias, nem sempre claras, cômodas ou confessáveis.
Ora, o filme de Kubrick é um filme sobre sexo. Por isso, aliás, não está garantido que encontre seu público. Parece que nos acostumamos à simplificação infantil da sexualidade: piadas e bundas. Há, para tal, uma explicação de marketing. Nos anos 90, os adolescentes e pré-adolescentes se tornaram público-alvo de um número cada vez maior de filmes. Hollywood aprendeu que os jovens têm mais dinheiro no bolso, gostam de ir ao cinema e levam os adultos consigo, estabelecendo e promovendo modas.
Os adultos adoram pegar onda com a rapaziada. Portanto, a representação do sexo no cinema se aproximou da que os adolescentes conseguem tolerar: barulhenta, mas fundamentalmente reprimida. Os palavrões, a vulgaridade (em breve, o barulho), servem para silenciar desejos e fantasias.
Este infantilismo sexual não é só efeito da chegada dos adolescentes no mercado da cultura. É também o refluxo dos anos 60. No burburejar da revolução sexual, parece que o cinema conseguiu encarar milagrosamente a complexidade do sexo. E isso para platéias que de alguma forma se reconheciam nele.
Entre 67 e 73, foram filmados, por exemplo, "A Primeira Noite de um Homem", "Perdidos na Noite" e "Último Tango em Paris". Desde então, os filmes sobre sexo se tornaram mais raros. Com a exceção (notável) da obra de Almodóvar e de alguns filmes em que o sexo aparece, mas com a desculpa de ser uma obsessão patológica (tipo "9 Semanas e 1/2 de Amor"), o cinema de grande público oferece desbunde, nudez e vulgaridade, mas não sexo.
O que aconteceu? Deveria se esperar que a revolução sexual permitisse olhar para o sexo em sua complexidade, às vezes soturna. Ora, parece que, em vez de abrir os olhos, nós os arregalamos, o que pode ser uma maneira de fechá-los. O sexo sumiu por baixo de uma caricatura festiva. A liberação sexual veio junto com uma recrudescência da ideologia higienista da vida: querem seus corpos para com eles livremente explorar prazeres? Podem, mas que sejam corpos saudáveis. Ou seja, querem gozar? Aqui está: cooper, aeróbica, muito sol (agora com protetor) e abaixo o colesterol.
O sexo liberado projetava uma orgia e acabou se parecendo com uma festa de cruzeiro durante as férias obrigatórias. A manteiga do "Último Tango em Paris" se tornou margarina dietética.
No filme de Kubrick há justamente uma cena de orgia que foi muito discutida. Por um lado, críticos e intelectuais (até no Brasil) se indignaram porque, a fim de evitar que o filme fosse classificado pornográfico, 65 segundos de película foram manejados eletronicamente para esconder órgãos sexuais copulando. Gritos de horror contra a censura. Os brasileiros podem ficar sossegados: no Brasil o filme será exibido na íntegra.
Mas vale lembrar que uma verdadeira censura sobre o sexo começa a funcionar quando pensamos que o sexo seja isso: pênis e vaginas expostos. Quem se preocupou com a ausência de órgãos eretos ou ficou esperando para ver se Cruise e Kidman transariam, pois bem: ficou de olhos arregaladamente fechados. De tanto querer ver, não viu nada.
Por outro lado, há a crítica frequente de que a cena da orgia seria triste, ritualizada. Caramba! Parece que a idéia mais comum de orgia é a caricatura do set de um filme pornográfico onde todos transam "legal", com muita luz e bom humor. Ou então, pior ainda, um clube de troca de casais, no qual um organizador do Club Mediterranée anima um bingo para quebrar o gelo.
Será que ainda há público para um filme adulto sobre sexo? Espero que sim. Deixe as crianças em casa. Deixe em casa também a criancice. E curta um filme que tenta levar o sexo a sério.

P.S. 1 - A escolha de Cruise e Kidman não é erro: eles são perfeitos por serem a imagem de um casal água-com-açúcar. Não transpiram sexo, não são Bruce Willis e Kim Basinger. Mas é esse o ponto: eles são um casal "copo-de-leite-bom-pra-saúde" e vão encontrar, de repente, dentro de si, alguns sonhos mais cabeludos.
2. Por favor: o filme não é uma história de ciúme. Salvo no sentido em que o ciúme é um vasto repertório de fantasias eróticas.

Email: ccalligari@uol.com.br


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