São Paulo, Quinta-feira, 02 de Setembro de 1999
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RÉPLICA
Dogmas e dogmatismos ingênuos

JOSÉ ÁLVARO MOISÉS
especial para a Folha

Marcelo Masagão fez um filme sobre o século 20, usando criativamente o material documental disponível. Custou apenas R$ 120 mil. Afora o filme, só isso ensejaria uma discussão indispensável para o cinema brasileiro. Não deveríamos fazer filmes mais baratos, não só porque os meios de financiamento são escassos, mas, também, porque quanto mais filmes fizermos maior será o acesso dos brasileiros ao cinema de seu próprio país?
O texto "O Dogma e O Desejo", publicado na Ilustrada do dia 13 de agosto último, contudo, sugere que isso é insuficiente. Catapultado pela visibilidade do filme, ele contesta a política do governo para o cinema e, baseado no Dogma 95 dos dinamarqueses, propõe o seu "Dogma Único". Se o "desejo" é inquestionável, o mesmo não se pode dizer de seus pressupostos.
Discuto-os porque se referem incorretamente à ação do Ministério da Cultura, e porque o próprio cineasta me pediu isso. Começo pelo óbvio: um diagnóstico do que se quer mudar não pode iniciar por dados inexatos, que desconhecem medidas já adotadas para enfrentar os problemas. Exemplos?

1. O custo médio das produções brasileiras é R$ 2,2 milhões e não R$ 3 milhões, como afirma Masagão. Ele confunde o teto estabelecido pelo MinC, em 1998, para uso de recursos da lei do audiovisual, com custo médio. Ademais, graças à retomada da produção nacional, por força das leis de incentivo, a média de público de filmes nacionais cresceu, é hoje de 223 (e não 30) mil espectadores.

2. Masagão crê que a gerência de recursos para o cinema está na mão de diretores de marketing de empresas que usam leis de incentivo, e não na de gestores culturais. Esquece que a) projetos apresentados às empresas são lavra de seus autores e só chegam às empresas depois de aprovados pelo MinC; b) o Programa Mais Cinema, lançado pelo governo, ao oferecer previamente, como empréstimos, os recursos pedidos por realizadores, reforça a sua independência diante dos investidores, que apenas decidem se investirão ou não em empreendimentos culturais já assegurados e em franca execução.

3. Ele finge ignorar, sobre a cota de tela, que o MinC perdeu, com a extinção do Concine, os instrumentos de mensuração e de controle dos filmes exibidos no país, mas que, apesar disso, tem solicitado dos exibidores informações completas sobre filmes exibidos e, com base nas informações, pediu a intervenção do Ministério Público, que poderá abrir ações cíveis contra as empresas que não cumprem a cota -o que vem provocando várias reações por parte das empresas de exibição.

4. O cineasta diz que o governo não estimula os realizadores a fazerem filmes de baixo orçamento, isto é, de até R$ 1 milhão (quase nove vezes mais o custo de seu filme). Mas não se manifesta sobre o fato de o Programa Mais Cinema priorizar filmes de orçamento de até R$ 900 mil, podendo premiá-los com 15% do valor solicitado, exatamente, por serem de baixo orçamento, de acordo com edital do programa.

5. Ao recorrer a uma inspiração alheia ao contexto brasileiro, o Dogma 95, esquece que, no passado e no presente, temos ótimos exemplos do que propõe: uma das motivações de Glauber, Saraceni, Cacá e outros, com o cinema novo ("Uma idéia na cabeça, uma câmara na mão"), foi uma fórmula inventiva de fazer filmes bons e de baixo orçamento. Masagão também se omite sobre toda uma geração de novos diretores -Tata Amaral, Eliana Caffé, Beto Brandt, Rosane Svartman, Marcelo Taranto, Toni Venturi e outros- que, como ele, filmam a custos, na verdade, inferiores ao teto estabelecido no seu "Dogma Único".

6. Ele crê que o governo não protege o cinema brasileiro porque isso "não combina com a atual cartilha da corte". Mas esquece que o problema não se resume a fazer filmes baratos e, antes, tem a ver com o fato de o mercado de exibição, no Brasil e em outros países, ser oligopolizado pela indústria americana. Se isso não justifica falhas de ação governamental, não deveria eclipsar o fato de, mesmo em países como a França, onde o protecionismo é maior que aqui, o mercado de exibição ser dominado em 70% pelos americanos. Ou seja, o problema exige alternativas políticas novas para ser enfrentado, e isso requer forte apoio público para ser eficaz. Quando elas não existem, devem ser construídas por todos, como o governo tenta fazer -algo de que não dá para explicar aqui, mas que não se coaduna com dogmatismos ingênuos como o "Dogma Único", uma solução simplista demais para problema muito complexo.


José Álvaro Moisés é secretário nacional do Audiovisual, do Ministério da Cultura, professor-associado de Ciência Política da USP e autor, entre outros, de "Os Brasileiros e a Democracia" (ed. Ática).


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