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RÉPLICA
Dogmas e dogmatismos ingênuos
JOSÉ ÁLVARO MOISÉS
especial para a Folha
Marcelo Masagão fez um filme sobre o século 20, usando
criativamente o material documental disponível. Custou
apenas R$ 120 mil. Afora o filme, só isso ensejaria uma discussão indispensável para o
cinema brasileiro. Não deveríamos fazer filmes mais baratos, não só porque os meios de
financiamento são escassos,
mas, também, porque quanto
mais filmes fizermos maior
será o acesso dos brasileiros ao
cinema de seu próprio país?
O texto "O Dogma e O Desejo", publicado na Ilustrada do
dia 13 de agosto último, contudo, sugere que isso é insuficiente. Catapultado pela visibilidade do filme, ele contesta
a política do governo para o
cinema e, baseado no Dogma
95 dos dinamarqueses, propõe o seu "Dogma Único". Se
o "desejo" é inquestionável, o
mesmo não se pode dizer de
seus pressupostos.
Discuto-os porque se referem incorretamente à ação do
Ministério da Cultura, e porque o próprio cineasta me pediu isso. Começo pelo óbvio:
um diagnóstico do que se quer
mudar não pode iniciar por
dados inexatos, que desconhecem medidas já adotadas
para enfrentar os problemas.
Exemplos?
1. O custo médio das produções brasileiras é R$ 2,2 milhões e não R$ 3 milhões, como afirma Masagão. Ele confunde o teto estabelecido pelo
MinC, em 1998, para uso de
recursos da lei do audiovisual,
com custo médio. Ademais,
graças à retomada da produção nacional, por força das leis
de incentivo, a média de público de filmes nacionais cresceu, é hoje de 223 (e não 30)
mil espectadores.
2. Masagão crê que a gerência de recursos para o cinema
está na mão de diretores de
marketing de empresas que
usam leis de incentivo, e não
na de gestores culturais. Esquece que a) projetos apresentados às empresas são lavra de
seus autores e só chegam às
empresas depois de aprovados pelo MinC; b) o Programa
Mais Cinema, lançado pelo
governo, ao oferecer previamente, como empréstimos, os
recursos pedidos por realizadores, reforça a sua independência diante dos investidores, que apenas decidem se investirão ou não em empreendimentos culturais já assegurados e em franca execução.
3. Ele finge ignorar, sobre a cota de tela, que o MinC perdeu,
com a extinção do Concine, os
instrumentos de mensuração
e de controle dos filmes exibidos no país, mas que, apesar
disso, tem solicitado dos exibidores informações completas sobre filmes exibidos e,
com base nas informações,
pediu a intervenção do Ministério Público, que poderá
abrir ações cíveis contra as
empresas que não cumprem a
cota -o que vem provocando
várias reações por parte das
empresas de exibição.
4. O cineasta diz que o governo não estimula os realizadores a fazerem filmes de baixo
orçamento, isto é, de até R$ 1
milhão (quase nove vezes
mais o custo de seu filme).
Mas não se manifesta sobre o
fato de o Programa Mais Cinema priorizar filmes de orçamento de até R$ 900 mil, podendo premiá-los com 15%
do valor solicitado, exatamente, por serem de baixo orçamento, de acordo com edital
do programa.
5. Ao recorrer a uma inspiração alheia ao contexto brasileiro, o Dogma 95, esquece
que, no passado e no presente,
temos ótimos exemplos do
que propõe: uma das motivações de Glauber, Saraceni, Cacá e outros, com o cinema novo ("Uma idéia na cabeça,
uma câmara na mão"), foi
uma fórmula inventiva de fazer filmes bons e de baixo orçamento. Masagão também se
omite sobre toda uma geração
de novos diretores -Tata
Amaral, Eliana Caffé, Beto
Brandt, Rosane Svartman,
Marcelo Taranto, Toni Venturi e outros- que, como ele,
filmam a custos, na verdade,
inferiores ao teto estabelecido
no seu "Dogma Único".
6. Ele crê que o governo não
protege o cinema brasileiro
porque isso "não combina
com a atual cartilha da corte".
Mas esquece que o problema
não se resume a fazer filmes
baratos e, antes, tem a ver com
o fato de o mercado de exibição, no Brasil e em outros países, ser oligopolizado pela indústria americana. Se isso não
justifica falhas de ação governamental, não deveria eclipsar
o fato de, mesmo em países
como a França, onde o protecionismo é maior que aqui, o
mercado de exibição ser dominado em 70% pelos americanos. Ou seja, o problema
exige alternativas políticas novas para ser enfrentado, e isso
requer forte apoio público para ser eficaz. Quando elas não
existem, devem ser construídas por todos, como o governo tenta fazer -algo de que
não dá para explicar aqui, mas
que não se coaduna com dogmatismos ingênuos como o
"Dogma Único", uma solução
simplista demais para problema muito complexo.
José Álvaro Moisés é secretário nacional
do Audiovisual, do Ministério da Cultura,
professor-associado de Ciência Política da
USP e autor, entre outros, de "Os Brasileiros e a Democracia" (ed. Ática).
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