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RODAPÉ
Coreografia dos gestos cotidianos
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Em "O Telhado e o Violinista",
primeiro conto do livro "Arquitetura do Arco-Íris", de Cíntia
Moscovich, uma menina ouve da
vizinha o impropério: "Judia suja". A frase inaugura em sua vida
as memórias do povo judeu e do
anti-semitismo, que a avó e o pai
lhe explicam.
Mas a tradição também tem os
seus holocaustos. Quando chega
o Yom Kippur (dia do perdão), a
menina quer interromper os ritos
religiosos e impede que a avó sacrifique uma galinha -que logo
dá à luz um pintinho que se torna
o centro da vida doméstica.
A vizinha anti-semita, investida
do espírito dos cossacos que realizavam "pogroms" no Leste Europeu, seqüestra o pinto, gerando
uma briga rocambolesca que culmina com a oração "Shemá Israel", recitada pela família ao redor do cadáver do galináceo.
Ao final, quando a filha pergunta por que aquilo havia acontecido, o pai responde: "Às vezes não
existe por quê" -ecoando pateticamente a frase que o escritor italiano Primo Levi ouviu de um
guarda da SS em Auschwitz:
"Aqui não existe por quê".
Em "Cartografia", a mecânica
repetitiva do cotidiano catapulta a
protagonista para fora da vida familiar. A casa enlutada pela morte
do pai, a mãe que alterna audições
de um vinil de Caruso a uma "ladainha constante sobre a infelicidade que lhe tocava no mundo",
compõem um ambiente submerso num desespero sem comoção:
"No rosto de minha mãe, uma
cartografia de desgraças".
A protagonista rompe com essa
resignação monótona. No estudo
da literatura e no apartamento
que divide com uma amiga, descobre simultaneamente um mundo e uma sexualidade alternativos
-até o momento em que reconhece, nos traços da mulher que a
abandona, a mesma "cartografia
de desgraças" cuja força centrípeta a conduz de volta à casa materna e a uma desolação que se afigura como destino: "Agora, além de
órfã de pai, eu era como minha
mãe: viúva".
O resumo desses dois contos,
pequenas obras-primas de ironia
e sensibilidade, não estraga em
nada as surpresas contidas no novo livro de Cíntia Moscovich (que
também acaba de reeditar, pela
Record, o romance "Duas
Iguais"). Sua literatura poderia
ser classificada como "feminina"
-e estão lá, para comprovar isso,
contos como "Bonita como a
Lua" (narrativa autobiográfica e
bem-humorada sobre uma menina desajeitada nas aulas de piano
e balé, mas com talento para a escrita) ou "Um Oco e um Vazio"
(impressionante relato de uma
cena de coito, que evita qualquer
palavra associada a sexo).
Mas se a sua percepção de mundo é feminina, o é apenas na medida em que ninguém pode saltar
sobre a própria sombra.
Pois Cíntia Moscovich faz da coreografia dos gestos cotidianos,
dos arrebatamentos e melancolias
de suas protagonistas, um ponto
de fuga a partir do qual organiza a
realidade.
Por trás de cada vivência afetiva
(sempre muito intensa nos contos
de "Arquitetura do Arco-Íris") e
das cicatrizes e nostalgias de sua
herança judaica, há um controle
da emoção em proveito daquilo
que é comunicável; se Moscovich
consegue comover sem ser piegas, isso acontece justamente por
que ela retira da matéria-prima
ficcional as regras que disciplinam sua expressão, tornando-a
"necessária".
Nesse sentido, os contos mais
bem realizados são "Fantasia-Improviso" e "O Arco-Íris à Meia-Noite". Neste, uma velha senhora
que perde a memória desenvolve,
pela oração, uma espécie de comunicação direta com Deus
-que a narrativa do conto acompanha na forma de uma escrita
epifânica.
Naquele, o encontro da protagonista com um pianista cego se
desdobra num jogo de reverberações: se a música representa a troca do "mundo das aparências por
compensações exclusivas à esfera
do invisível", o contato erótico
restaura as aparências pelo tato
mas também faz ver que "o avanço de duas pessoas no querer" se
faz "às cegas", que o desejo, assim
como a cegueira, cancela o livre-arbítrio.
Em "Fantasia-Improviso", as
palavras -como a música- harmonizam a desordem dos afetos,
dão inteligibilidade ao mundo
sensível. O que, aliás, pode ser
uma definição para a literatura.
Arquitetura do Arco-Íris
Autora: Cíntia Moscovich
Editora: Record
Quanto: R$ 26,90 (178 págs.)
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