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"MARE NOSTRUM"
Miguel traça microhistórias catarinenses
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
O escritor catarinense Salim Miguel, 80, definiu seu
novo livro, "Mare Nostrum", como um "romance desmontável".
Mas que ninguém espere uma
obra experimental à maneira de
"O Jogo da Amarelinha" (do argentino Júlio Cortázar).
Miguel, que em 2002 ganhou o
prêmio Juca Pato de intelectual do
ano, é antes de tudo um grande
contador de histórias, como Jorge
Amado, João Ubaldo Ribeiro ou o
colunista da Folha Moacyr Scliar,
escritores que, a despeito das diferenças que os separam, nunca
deixam que o empenho formal se
sobreponha à fluência narrativa e
ao destino dos personagens.
"Mare Nostrum" é uma espécie
de romance polifônico, um conjunto de histórias interligadas de
personagens que vivem à beira do
mar, especialmente em Florianópolis, e mais especialmente ainda
na comunidade de Cachoeira do
Bom Jesus, no norte da ilha de
Santa Catarina.
Há aqueles que nunca saíram da
região: pescadores, rendeiras, o
maluco da aldeia... E há os que
partiram jovens, conheceram o
mundo e voltaram para o lugar de
origem. Vários deles trazem o
mar até no nome: Marcelo, Marcolina, Altimar.
Suas trajetórias são as mais variadas. Altimar, filho de pescador,
retorna à ilha com um grande veleiro, depois de ter virado "doutor"; "Seo" Neno, homem capaz
de todos os serviços, da pesca à
carpintaria, da alvenaria à jardinagem, vê a morte de perto ao pisar num caco e contrair tétano;
uma mulher recolhe em sua casa
os animais doentes e feridos; o filho dela engravida uma moça do
vilarejo e depois a troca por uma
argentina.
Há ainda figuras que raiam as
fronteiras do mito: o negro centenário Ti Adão, a mulher que vive
de luz, o eremita que vive caçando
corruptos (pequenos crustáceos)
na areia da praia.
O livro começa em terceira pessoa, com amplo recurso ao discurso indireto livre, e aos poucos
se estilhaça em muitas vozes (incluindo a de um cão e a de um
morto), compondo um painel
muito vivo dessa região singular,
em que convivem o arcaico e o
moderno, o rural e o urbano, o
marítimo e o terrestre.
Os choques culturais entre os
nativos mais velhos -os "manezinhos"- e os forasteiros, entre a
cultura paroquial e as transformações urbanas, encontram um
alto momento de síntese literária
no capítulo "No Cartório", em
que um pescador analfabeto tenta
em vão registrar um de seus filhos
na cidade.
Atento às transformações do
ambiente e dos modos de vida,
Miguel não descuida de buscar
também aquilo que permanece ao
longo das décadas, os gestos humanos mais profundos, os mistérios do mar.
Se seu livro anterior, "Nu na Escuridão", tratava da saga dos imigrantes libaneses, em "Mare Nostrum" a inspiração autobiográfica
também é evidente em certos trechos, mas o foco é ao mesmo tempo mais concentrado e mais
abrangente. O autor chega ao universal pelo caminho indicado por
Tolstói, ou seja, cantando a sua
bela aldeia.
Mare Nostrum
Autor: Salim Miguel
Editora: Record
Quanto: R$ 26,90 (174 págs.)
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