São Paulo, sábado, 02 de outubro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"MARE NOSTRUM"

Miguel traça microhistórias catarinenses

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

O escritor catarinense Salim Miguel, 80, definiu seu novo livro, "Mare Nostrum", como um "romance desmontável". Mas que ninguém espere uma obra experimental à maneira de "O Jogo da Amarelinha" (do argentino Júlio Cortázar).
Miguel, que em 2002 ganhou o prêmio Juca Pato de intelectual do ano, é antes de tudo um grande contador de histórias, como Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro ou o colunista da Folha Moacyr Scliar, escritores que, a despeito das diferenças que os separam, nunca deixam que o empenho formal se sobreponha à fluência narrativa e ao destino dos personagens.
"Mare Nostrum" é uma espécie de romance polifônico, um conjunto de histórias interligadas de personagens que vivem à beira do mar, especialmente em Florianópolis, e mais especialmente ainda na comunidade de Cachoeira do Bom Jesus, no norte da ilha de Santa Catarina.
Há aqueles que nunca saíram da região: pescadores, rendeiras, o maluco da aldeia... E há os que partiram jovens, conheceram o mundo e voltaram para o lugar de origem. Vários deles trazem o mar até no nome: Marcelo, Marcolina, Altimar.
Suas trajetórias são as mais variadas. Altimar, filho de pescador, retorna à ilha com um grande veleiro, depois de ter virado "doutor"; "Seo" Neno, homem capaz de todos os serviços, da pesca à carpintaria, da alvenaria à jardinagem, vê a morte de perto ao pisar num caco e contrair tétano; uma mulher recolhe em sua casa os animais doentes e feridos; o filho dela engravida uma moça do vilarejo e depois a troca por uma argentina.
Há ainda figuras que raiam as fronteiras do mito: o negro centenário Ti Adão, a mulher que vive de luz, o eremita que vive caçando corruptos (pequenos crustáceos) na areia da praia.
O livro começa em terceira pessoa, com amplo recurso ao discurso indireto livre, e aos poucos se estilhaça em muitas vozes (incluindo a de um cão e a de um morto), compondo um painel muito vivo dessa região singular, em que convivem o arcaico e o moderno, o rural e o urbano, o marítimo e o terrestre.
Os choques culturais entre os nativos mais velhos -os "manezinhos"- e os forasteiros, entre a cultura paroquial e as transformações urbanas, encontram um alto momento de síntese literária no capítulo "No Cartório", em que um pescador analfabeto tenta em vão registrar um de seus filhos na cidade.
Atento às transformações do ambiente e dos modos de vida, Miguel não descuida de buscar também aquilo que permanece ao longo das décadas, os gestos humanos mais profundos, os mistérios do mar.
Se seu livro anterior, "Nu na Escuridão", tratava da saga dos imigrantes libaneses, em "Mare Nostrum" a inspiração autobiográfica também é evidente em certos trechos, mas o foco é ao mesmo tempo mais concentrado e mais abrangente. O autor chega ao universal pelo caminho indicado por Tolstói, ou seja, cantando a sua bela aldeia.


Mare Nostrum
    
Autor: Salim Miguel
Editora: Record
Quanto: R$ 26,90 (174 págs.)



Texto Anterior: Livros/lançamentos: Autores do Norte trazem realismos mágico e trágico
Próximo Texto: "Três Contos": Histórias testemunham impasses da criação para Flaubert
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.