São Paulo, sábado, 02 de outubro de 2010

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LIVROS

"Buenos Aires olha para o século 20"

Estrela da Feira de Frankfurt, na Alemanha, Beatriz Sarlo diz que São Paulo representou sua ideia de modernidade

Nestor Garcia/"Clarín"
A escritora argentina Beatriz Sarlo, que é uma das convidadas de honra do evento literário alemão e lança no Brasil a obra "Modernidade Periférica"

MARCOS FLAMÍNIO PERES
DE SÃO PAULO

Buenos Aires perdeu o bonde da história. Sim, ainda é relativamente segura e homogênea, dispõe de bom transporte público e de uma vida cultural vibrante. Mas ninguém olha para ela enxergando o futuro, mas apenas o século 20.
É o que defende Beatriz Sarlo, a mais influente intelectual argentina e uma das estrelas da maior feira de livros do mundo, que começa na quarta-feira em Frankfurt.
Ela está lançando no Brasil "Modernidade Periférica", um retrato do processo de modernização por que passou o país nos anos 1920-30.
Mas sua tese mais forte, desenvolvida a partir dos escritos do crítico brasileiro Roberto Schwarz, é de que a capital portenha foi o epicentro de uma "cultura de mescla" em todo o continente.
Assim, por trás do surto imigratório, de urbanização intensa, alfabetização em massa e crescimento da mídia impressa se escondia uma contradição de fundo -a inadequação entre ideias importadas da Europa aclimatadas à força em um ambiente político, cultural e social que lhe era estranho.
Sarlo também bate pesado na tentativa da presidente Cristina Kirchner de cercear a atuação do grupo Clarín, o maior de mídia do país. O governo, diz ela, "não teve problemas com grupo enquanto este era seu aliado. Só passou a chamá-lo de monopolista quando perdeu seu apoio, em 2008".

 

Folha - Por que tantas semelhanças entre Buenos Aires e São Paulo nos anos 1920-30?
Beatriz Sarlo
- Uma das experiências da modernidade que mais me marcou foi ter chegado a São Paulo em meados dos anos 1960. Era apenas uma estudante e ainda não conhecia Nova York. São Paulo me pareceu a "verdadeira" cidade moderna. Também me parecia que, como gesto vanguardista, de performance estética e moral, São Paulo tinha caráter mais de ruptura, menos comprometido com a tradição.

A "cultura de mescla" a que a sra. se refere pode definir toda a América Latina -e não só a cultura argentina?
Define todo o continente, sem dúvida, com mostram os estudos pioneiros de Antonio Cornejo Polar (para a cultura andina), Ángel Rama (para toda a América), Octavio Paz e Roger Bartra (México) e Antonio Candido (Brasil). O que Roberto Schwarz assinalou no ensaio "As Ideias Fora do Lugar [em "Ao Vencedor as Batatas", ed. 34], é importante para articular melhor a questão da mescla cultural. Em cada região da América Latina, as ideias europeias de misturam dentro de marcos culturais e sociais diferentes.
A Argentina era uma república liberal, governada por elites oligárquicas que, diferentemente do Brasil, aboliu a escravidão em 1813. Dessa república foram excluídos os povos americanos, que tiveram suas terras expropriadas. Dizer "cultura de mescla" não significa muito se não se precisar que elementos se mesclam e em que contextos político-ideológicos.

Onde Buenos Aires se situa na América Latina atual?
Não é uma cidade globalizada do futuro; é uma grande cidade do presente. Não tem a vitalidade e a desordem da Cidade do México nem a exuberância capitalista de São Paulo nem o apelo modernista de Brasília. É relativamente homogênea, com grande presença de classe média e razoável transporte público. Culturalmente, é vital e de reflexos rápidos. Mas esses são traços de uma modernidade tardia, que remetem mais ao século 20 que a utopias ou distopias.

Como se articulava a relação entre campo e cidade?
O país cresceu devido às vantagens comparativas para a agropecuária. As terras, extensas, planas e muito férteis, não precisavam de grandes investimentos nem de trabalho intensivo. Daí o crescimento populacional ter ocorrido sobretudo nas áreas urbanas. Além disso, os latifúndios agrários impediram que boa parte dos imigrantes se instalasse no campo.

Como aquela época prefigurou a Argentina atual?
A Argentina do século 20 foi marcada por golpes de Estado. Julgava-se que ocorreria a dissolução da nação caso não se reprimissem aquilo que se chamava na Europa de repúblicas de massa.

Jornais e revista foram fundamentais para a modernização da sociedade da época. Como vê hoje o embate entre o governo Kirchner e a mídia?
O êxito do processo de alfabetização, que ocorreu muito cedo nas cidades, proporcionou à imprensa e à indústria cultural um público capacitado, produzindo um círculo virtuoso.
Hoje, os jornais impressos perderam para a internet centenas de milhares de leitores, e suas versões digitais incorporam formatos novos -blogues, fóruns, chats, comentários de leitores, links para o Facebook e Twitter.
Contudo, a agenda ainda se fixa na versão impressa (lida pelas elites) e daí rebate nas outras plataformas. Quanto ao atual conflito com a imprensa, minha opinião é de que os grandes jornais não devem controlar canais de TV. Essa concentração vertical está proibida em países como os EUA, que vigiam atentamente a liberdade de informação.

MODERNIDADE PERIFÉRICA

AUTOR Beatriz Sarlo
TRADUÇÃO Júlio Pimentel Pinto
EDITORA CosacNaify
QUANTO R$ 55 (480 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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