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ARTIGO
Dostoiévski, Ariano e a pernambucália
CAETANO VELOSO
especial para a Folha
No final da longa, entusiasmante e cansativa excursão que acabei
de fazer pelo Brasil, li, num avião,
um artigo de Ariano Suassuna em
que o refrão surrealista "É proibido proibir", usado por mim em
uma canção de 1968, é interpretado como um argumento ateísta
do tropicalismo, sendo por isso
equivalente a um suposto "princípio amoral" que Sartre teria extraído da frase de Ivan Karamazov: "Se Deus não existe, tudo é
permitido".
Ariano dizia no artigo que ele
próprio, superando a ilusão juvenil de "desvencilhar-se de Deus",
tinha, ao contrário de Sartre,
aprendido com a famosa frase
dostoievskiana a seguinte lição:
"Vejo que nem tudo é permitido,
então Deus existe". Contava também que, num debate realizado
no Recife, ele sugerira a "hipótese
de um sujeito sair por aí atirando
em travestis e homossexuais" como argumento contra a presunção de um "seguidor do lema "É
proibido proibir'", de que este se
fundamentava numa "ética libertária do prazer", pois, se o assassino declarasse que agia assim por
prazer, nós nos veríamos proibidos de proibir seus atos.
No avião, pensei em responder.
Ao chegar em casa, a fadiga e a
alegria me livraram até da lembrança do artigo. Mas aí João Cabral morreu, eu fiquei muito abalado, surgiram as revelações de
uma suposta conversão religiosa
do poeta ao morrer, Tom Zé escreveu sobre a bossa nova e eu
voltei a pensar na conversa de
Ariano.
A antipatia de Ariano Suassuna
pelo tropicalismo é notória, mas,
talvez porque nunca tivesse sido
correspondida, nunca me levou a
querer ou precisar reagir publicamente. Sempre pensei nele com
respeito e carinho. Sou grato ao
homem que escreveu o "Auto da
Compadecida", e quando li, de
volta do exílio, "O Romance da
Pedra do Reino", lancei um sorriso cúmplice ao autor que, como
eu, via no mito de d. Sebastião
uma força oculta do Brasil fundando-se e não uma outra prova
do nosso ridículo -embora estivesse claro que ele e eu nos situávamos nos extremos opostos do
âmbito desse mito (e eu disse a José Almino, comentando o livro:
"Prefiro "Deus e o Diabo na Terra
do Sol'"). Mas agora uma resposta
clara se faz necessária.
Em primeiro lugar, eu posso dizer que sou ateu, mas não se pode
dizer que o tropicalismo o seja. Na
noite da apresentação de "É Proibido Proibir", eu entrei no palco
gritando "Deus está solto" e, no
meio da canção, declamei o "D.
Sebastião" de Fernando Pessoa (o
que fiz também na gravação da
canção para disco).
Gil tornava-se cada vez mais
esotérico, e eu próprio vivi a virada tropicalista como sendo, entre
outras coisas, uma volta às questões que dizem respeito à religião,
sobretudo porque eu acreditava
então estar a religiosidade tão reprimida (pelos dogmas
da esquerda
superficial
que imperava no ambiente da
música popular) quanto a sexualidade.
Mas o refrão "É proibido proibir"
não carece
dessas ressalvas. Ele simplesmente
não pode ser
tomado por
outra coisa
que não um
paradoxo irreverente, a
menos que se
parta de uma
atitude intelectualmente
desonesta.
De qualquer
forma, mesmo que, pérfida ou ingenuamente,
tentemos tomá-lo ao pé
da letra (mas como, se ele é uma
letra que emenda o pé na cabeça e
não pára de girar?), da idéia de
proibir todas as proibições não se
deduz necessariamente o ateísmo.
Ao contrário, se tivermos coragem de pensar como Sartre, é a
responsabilidade moral do homem que implica a impossibilidade de Deus. Tudo bem, Sartre
está fora de moda, mas é espantoso que um autor tão erudito como
Ariano o desconheça tanto, ou o
entenda tão mal.
De fato, num texto escrito durante a guerra, Sartre desenvolve
uma argumentação em torno da
questão da moral, em que se lê: "O
homem encontra por toda parte a
projeção de si mesmo, tudo o que
encontra é a sua projeção. A esse
respeito, o que podemos dizer de
mais definitivo sobre uma moral
sem Deus é que toda moral é humana, mesmo a moral teológica".
Quando cita diretamente a frase
de Ivan é para observar: "Dostoiévski escreveu: "Se Deus não
existe, tudo é permitido". É o
grande erro da transcendência.
Quer Deus exista ou não, a moral
é um assunto "entre homens", no
qual Deus não mete o bedelho. A
existência da moral, na verdade,
longe de provar a existência de
Deus, mantém-na à distância".
Isso quer dizer que os valores
morais são responsabilidade dos
homens, mesmo quando eles os
atribuem a Deus (acerca de quem,
aliás, há pelo menos tantas divergências de opinião quanto as há a
respeito de normas laicas, pagãs
ou profanas). O homem primeiro
decidiu reprovar o assassinato e
depois botou o "não matarás" na
boca de Deus. "Nunca Temos
Desculpas" é a conclusão de Sartre quanto ao sentido de nossa liberdade e de nossa responsabilidade moral.
É um dos meus textos favoritos
a respeito do assunto. Como é que
eu vou admitir que Ariano reduza
a posição de Sartre a um irresponsável vale-tudo, ainda mais quando o quer ligar ao "É proibido
proibir" que minha canção tomou dos estudantes parisienses,
os quais, por sua vez, a tinham tomado dos surrealistas? Então
Deus existe porque Ariano vê que
nem tudo é permitido? Que diabo
de lógica é essa?
É a mesma que o deixa à vontade para tomar como universal a
certeza de que toda moral deduz-se da idéia de um Deus único e absoluto. Isso simplesmente é uma
agressão à história e à razão. Antes do surgimento do Deus de
Moisés e de Abraão, o homem já
desenvolvera normas morais. E,
quanto ao ato de matar homossexuais simplesmente por serem
homossexuais, no Ocidente não
se poderia sequer imaginar tal
coisa antes que Roma adotasse o
Deus único dos cristãos.
A frase "É proibido proibir" é
uma deliberada transgressão das
leis da lógica que, com sua carga
de humor e poesia, não atrapalha
os verdadeiros amantes da razão.
O raciocínio de Ariano é um ataque insidioso contra a razão e a
lógica.
Imagino a cena do debate no
Recife. O tropicalista pernambucano (talvez um pupilo do meu
muito querido Jomard Muniz de
Britto?) dizendo a Ariano que
uma "ética do prazer" fundamenta a frase "É proibido proibir", e
ele vindo com aquela história do
sujeito que sai atirando em travestis e homossexuais e do tropicalista impedido de proibir essa
matança. Quando se terá dado tal
debate? Em 1968? Em 1986? Em
1995?
O fato é que Ariano está até hoje
certo de que dele saiu vitorioso.
Mas mesmo o silêncio atônito do
tropicalista representaria, a meus
olhos, uma vitória esmagadora
deste sobre ele. Porque: é proibido proibir o meu amigo tropicalista de proibir que alguém mate
homossexuais só porque o meu
amigo tropicalista diz que é proibido proibir.
Ou seja, a frase não serve para
argumentações racionais. É uma
"boutade" libertária que começa
justamente por desrespeitar a racionalidade (neste particular,
aliás, ela mais se aproxima das
fórmulas místicas e profissões de
fé religiosa do que das argumentações sartreanas: está mais para o
"se Deus não existe, tudo é permitido" do que para "a liberdade é liberdade de escolher, mas não de
não escolher" de
"O Ser e o Nada"). Podemos
fazê-la parar de
girar onde quisermos. Os surrealistas, os garotos do maio
francês e os tropicalistas brasileiros nunca quisemos fazê-la
parar.
Mas, se fosse o
caso de ter de fazê-lo, eu tomaria
como definitiva
a proibição de
proibir alguém
de proibir o assassinato gratuito de travestis e
homossexuais.
Porque o prazer
destes não representa, em princípio, a destruição
da vida ou da liberdade dos outros, enquanto o
prazer do assassino imaginado
por Ariano nasce exata e exclusivamente disso.
Prefiro continuar crendo que
Ariano jamais desejou nada semelhante a tais crimes. Mas por
que a escolha do exemplo? Certamente ele partiu da pressuposição
de que o tropicalista tivesse uma
simpatia por travestis e homossexuais de que ele não partilhava.
(Aliás, lembro de um episódio
em que Ariano conseguiu que se
proibisse a representação da
"Compadecida" com um homem
travestido no papel da virgem, o
que, na época, me fez pensar em
quão pouco coerente com o amor
ao "teatro clássico" era essa intolerância com atores travestidos...)
Assim, o debate foi conduzido
com má-fé. Em vez de discutir sua
discussão verdadeira -isto é: se
os homossexuais enquanto tais
são dignos de irrestrita aprovação
moral-, o tropicalista pernambucano se viu levado a discutir a
lógica de uma frase que foi criada
como exercício de destruição da
própria lógica.
Se digo que sua verdadeira discussão seria aquela, é por causa
do exemplo escolhido por Ariano. Mas igualmente verdadeiro e
seu seria discutir com Ariano se a
afirmação cultural do Brasil reduz-se mesmo ao programa algo
kitsch de estilização bairrista da
arte folclórica do Nordeste como
forma de restauração do medievo
ibérico. Porque o verdadeiro opositor do dogma armorial é o natural rigor da bossa nova.
Tom Zé está certo. O valor do
tropicalismo se resume a sua coragem de gritar que não podemos
fugir às responsabilidades criadas
por João Gilberto e Tom Jobim.
Ariano fala com frequência contra o tropicalismo, mas suas poucas palavras de desprezo pela arte
de Jobim foram mais eloquentes.
Não apenas eu acho que a refinadíssima sutileza do estilo joãogilbertiano é a expressão de uma
intuição profunda sobre a nossa
singularidade de brasileiros reais
de agora vivendo no mundo real
de agora, sem perder de vista a
realização do quase impossível
em nós, como só de posse disso é
que sou capaz de aceitar e mesmo
admirar muito da produção do
movimento armorial.
E não porque Ariano creia em
Deus e eu não creia -que João
Gilberto crê talvez com mais firmeza-, mas porque o que vislumbro por trás da hipótese de o
armorial (e não a bossa nova) ser
o dominante ou hegemônico é
um Brasil onde ódios irracionais
como esse contra travestis sejam a
norma e a lei oficiais. Quando grito, cada vez que se arma uma celebração retrospectiva do tropicalismo, "a luta continua", é isto que
estou querendo dizer.
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