São Paulo, quarta-feira, 02 de novembro de 2005

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LITERATURA

Maria Valéria Rezende, religiosa que correu o país com programa de alfabetização, lança romance sobre uma meretriz

Freira constrói os rumos de uma prostituta

JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma freira que se embrenha pelos mais acres sertões, dedicada a alfabetizar seus esquecidos habitantes. Uma mulher que, a exemplo de Dorothy Stang, assassinada em fevereiro no Pará, enfrenta o poder de coronéis e fazendeiros para fazer valer a educação popular. Uma boa personagem, poderá julgar o leitor, ciente de que este é um texto sobre literatura. Estará enganado: trata-se de uma boa autora.
É Maria Valéria Rezende, 62, membro há 40 anos da Congregação de Nossa Senhora - Cônegas de Santo Agostinho. Uma santista que, como educadora popular, já migrou por quase todo o país -e até o deixou, para ser uma das primeiras a professar as idéias de Paulo Freire no Timor Leste independente- e que acaba de lançar seu segundo livro, "O Vôo da Guará Vermelha".
Nem uma leitura religiosa ou sociológica dessas vivências nem um testemunho direto de tudo o que ela viu e ouviu. "O Vôo" não é um ensaio ou um relato autobiográfico, e sim um romance -altamente poético, por sinal. E a "Guará Vermelha", essa ave de fortes tintas, uma prostituta de bordel decadente que sofre de Aids: sua protagonista.
Com Irene, triste personagem que só não abre voluntariamente a única porta pela qual se deixa a vida, "a que dá para o cemitério", por ter um filho a criar, contracena Rosálio, um ajudante de pedreiro que carrega amargamente o sonho nunca cumprido de aprender a ler. "Sínteses ou representantes de gente com quem convivi a vida toda", diz Rezende. Sujeitos surrados e perdidos, carentes de qualquer satisfação, cujo primeiro encontro se anuncia, presumivelmente, como mais infortúnio, mas ao fim se processa como redenção.

Salvação pela palavra
De onde a salvação? Da Bíblia? Não, uma salvação pela palavra, sim, mas de outra ordem: a simples redenção de contar histórias, de dedicar-se a escolher palavras, de compartilhar vivências nunca compartilhadas, de reinventar experiências há muito esquecidas. Vez um, vez outro, ambos serão Sherazades, a salvar suas próprias vidas e a quase poupar o outro de sua inevitável culpa, sempre através do poder da narrativa.
Nenhuma incoerência com o trabalho habitual de Rezende, baseado no ouvir e contar histórias e no estimular a leitura. Ela explica: "A leitura é a única forma que a gente tem de alargar o nosso mundo e as nossas vidas. Um livro bem escrito permite você viver uma outra vida pela imaginação. Permite você viver aquilo que, nas estreitas margens da vida concreta, você não pode".
Que o sacrilégio seja perdoável, mas uma freira que escreve sobre uma prostituta e faz essa declaração não pode privar-se de mais algum esclarecimento. Rezende não se priva: "Você faz as escolhas da vida e fica sempre com saudade dos caminhos que não seguiu. A literatura é a melhor solução que até hoje se encontrou para essa angústia, de ter que escolher um caminho e entrar por bifurcações que não têm volta".
Com isso, compreende-se melhor a frase que abre "O Vôo da Guará Vermelha", ainda que a autora prefira negá-lo: "Das fomes e vontades do corpo há muitos jeitos de se cuidar".
De caminhos e bifurcações diversos constrói-se também o livro. Das histórias que Rosálio conta a Irene, em troca do conhecimento das letras que esta lhe vai gradualmente transmitindo, constitui-se um retrato abrangente do país inteiro, com suas novas escravidões, seus garimpos cruéis, sua violência urbana, seu desejo por reforma agrária. Histórias duras, sem dúvida, mas que se iluminam quando voltamos à habitação já não tão escura de Irene, onde conversam aqueles dois devotos da palavra. Rezende é quem conclui: "Minha vocação não são as sombras. Mas é por elas que tento recuperar a luz".


O Vôo da Guará Vermelha
Autor:
Maria Valéria Rezende
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 32,90 (184 págs.)


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