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LITERATURA
Maria Valéria Rezende, religiosa que correu o país com programa de alfabetização, lança romance sobre uma meretriz
Freira constrói os rumos de uma prostituta
JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL
Uma freira que se embrenha pelos mais acres sertões, dedicada a
alfabetizar seus esquecidos habitantes. Uma mulher que, a exemplo de Dorothy Stang, assassinada
em fevereiro no Pará, enfrenta o
poder de coronéis e fazendeiros
para fazer valer a educação popular. Uma boa personagem, poderá
julgar o leitor, ciente de que este é
um texto sobre literatura. Estará
enganado: trata-se de uma boa
autora.
É Maria Valéria Rezende, 62,
membro há 40 anos da Congregação de Nossa Senhora - Cônegas
de Santo Agostinho. Uma santista
que, como educadora popular, já
migrou por quase todo o país -e
até o deixou, para ser uma das primeiras a professar as idéias de
Paulo Freire no Timor Leste independente- e que acaba de lançar
seu segundo livro, "O Vôo da
Guará Vermelha".
Nem uma leitura religiosa ou
sociológica dessas vivências nem
um testemunho direto de tudo o
que ela viu e ouviu. "O Vôo" não é
um ensaio ou um relato autobiográfico, e sim um romance -altamente poético, por sinal. E a
"Guará Vermelha", essa ave de
fortes tintas, uma prostituta de
bordel decadente que sofre de
Aids: sua protagonista.
Com Irene, triste personagem
que só não abre voluntariamente
a única porta pela qual se deixa a
vida, "a que dá para o cemitério",
por ter um filho a criar, contracena Rosálio, um ajudante de pedreiro que carrega amargamente
o sonho nunca cumprido de
aprender a ler. "Sínteses ou representantes de gente com quem
convivi a vida toda", diz Rezende.
Sujeitos surrados e perdidos, carentes de qualquer satisfação, cujo primeiro encontro se anuncia,
presumivelmente, como mais infortúnio, mas ao fim se processa
como redenção.
Salvação pela palavra
De onde a salvação? Da Bíblia?
Não, uma salvação pela palavra,
sim, mas de outra ordem: a simples redenção de contar histórias,
de dedicar-se a escolher palavras,
de compartilhar vivências nunca
compartilhadas, de reinventar experiências há muito esquecidas.
Vez um, vez outro, ambos serão
Sherazades, a salvar suas próprias
vidas e a quase poupar o outro de
sua inevitável culpa, sempre através do poder da narrativa.
Nenhuma incoerência com o
trabalho habitual de Rezende, baseado no ouvir e contar histórias e
no estimular a leitura. Ela explica:
"A leitura é a única forma que a
gente tem de alargar o nosso
mundo e as nossas vidas. Um livro bem escrito permite você viver uma outra vida pela imaginação. Permite você viver aquilo
que, nas estreitas margens da vida
concreta, você não pode".
Que o sacrilégio seja perdoável,
mas uma freira que escreve sobre
uma prostituta e faz essa declaração não pode privar-se de mais algum esclarecimento. Rezende
não se priva: "Você faz as escolhas
da vida e fica sempre com saudade dos caminhos que não seguiu.
A literatura é a melhor solução
que até hoje se encontrou para essa angústia, de ter que escolher
um caminho e entrar por bifurcações que não têm volta".
Com isso, compreende-se melhor a frase que abre "O Vôo da
Guará Vermelha", ainda que a autora prefira negá-lo: "Das fomes e
vontades do corpo há muitos jeitos de se cuidar".
De caminhos e bifurcações diversos constrói-se também o livro. Das histórias que Rosálio
conta a Irene, em troca do conhecimento das letras que esta lhe vai
gradualmente transmitindo,
constitui-se um retrato abrangente do país inteiro, com suas novas
escravidões, seus garimpos
cruéis, sua violência urbana, seu
desejo por reforma agrária. Histórias duras, sem dúvida, mas que
se iluminam quando voltamos à
habitação já não tão escura de Irene, onde conversam aqueles dois
devotos da palavra. Rezende é
quem conclui: "Minha vocação
não são as sombras. Mas é por
elas que tento recuperar a luz".
O Vôo da Guará Vermelha
Autor: Maria Valéria Rezende
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 32,90 (184 págs.)
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