São Paulo, quinta-feira, 02 de novembro de 2006

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CONTARDO CALLIGARIS

Viva o cinema


Nunca sentimos tanto a unidade por trás da variedade de culturas: é graças ao cinema


CHEGA AO fim a 30ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Fui convidado a fazer parte do júri. Funciona assim: concorrem ao prêmio os filmes de diretores "jovens" (a obra deve ser seu primeiro ou segundo longa-metragem), os votos dos espectadores da mostra selecionam 15 finalistas, entre os quais um júri de sete pessoas escolhe qual ou quais premiar.
Desde domingo passado, assisto a três ou quatro filmes por dia. Na minha adolescência, passava as tarde de sábado no cineclube do meu colégio e assistia a dois filmes. À noite, quase sempre, ia ao cinema. Mas era só um dia por semana.
Guardo com carinho os diários do meu pai; são quase 60 volumes, de 1936 a 1994. A partir do fim dos anos 40, em média três vezes por semana, meus pais iam ao cinema, anotavam o título, o diretor e os atores principais, atribuíam uma nota ao filme (de zero a dez) e escreviam brevemente por que tinham gostado (ou não). Quando me dou o prazer (um pouco doloroso) de ler os diários, sempre me surpreendo com essas anotações: há filmes que eles adoraram e que eu presumia que eles tivessem detestado.
Imaginava que eles reprovariam aqueles filmes que falavam de uma experiência próxima de minhas inquietudes e (portanto, eu supunha) afastadíssima da visão do mundo de meus pais; ora, tanto "Juventude Transviada" quanto "De Punhos Cerrados" ganharam um 9. Ou, então, pensava que eles não gostariam de narrativas inovadoras, pouco convencionais; ora, "Fellini 8 1/2" também ganhou um 9.
Há uma entrada, de 1974, que é enigmaticamente sintética. Apenas o título e a nota, sem comentário nem nome do diretor e dos atores: "C'Eravamo tanto Amati - 10".
Para quem tinha vivido a resistência antifascista, o filme de Ettore Scola ("Nós que Nos Amávamos Tanto") era um balanço que deixava sem palavras.
O cinema é uma arte maravilhosa: um filme consegue nos envolver numa história e num mundo (semelhantes ao nosso ou radicalmente diferentes dele, tanto faz) muito mais rapidamente que a leitura de um romance. Além disso, o cinema conseguiu ensinar sua linguagem a seus espectadores de maneira, por assim dizer, indolor: todos entendem e reconhecem campos e contracampos, inversões temporais e deslizes da realidade ao sonho. Ninguém precisou estudar dicionário, gramática e sintaxe: a narrativa era imediata e magicamente acessível.
Graças ao cinema, qualquer sujeito da segunda metade do século 20 se apaixonou, comoveu-se, indignou-se por uma diversidade inédita de histórias. Com isso, nunca como hoje tivemos uma consciência da unidade por trás da multiplicidade das culturas e dos destinos. Nunca como hoje tivemos a sensação de que a imensa variedade das experiências humanas (misérias e grandezas, sonhos e pesadelos) é apenas um repertório de vidas que poderiam todas ser as nossas -a ponto que, por um instante, numa sala escura, sentimos facilmente seu gosto.
Não é louco pensar (com otimismo) que os conflitos que se exacerbam hoje (entre culturas, religiões e mesmo entre os que têm mais e os que não têm nada) sejam sobressaltos penosos, que resistem à rápida expansão do sentimento de uma comunidade de destino. Na aceleração dessa expansão, o papel do cinema foi e é crucial.
Claro, nas próximas semanas, comentarei os filmes que mais me tocaram. Mas, desde já, gostaria de organizar uma sessão dupla. Um dos filmes é egípcio, "O Edifício Yacoubian", de Marwan Hamed; o outro é norte-americano, "Shortbus", de John Cameron Mitchell (espero que logo entrem em cartaz).
O filme egípcio é o retrato de um mundo dilacerado entre a nostalgia de um passado tradicional, a corrupção de uma plutocracia com ares de democracia e a tentação do fundamentalismo como forma de vingança. O filme americano é o retrato de uma geração perdida na procura impossível (e cômica) do orgasmo e do amor perfeitos. Pois bem, eu sonho com uma cabine em que sentassem para projeção dupla os governantes dos países ocidentais (a começar pelos EUA) e as elites políticas e religiosas dos países islâmicos. Na verdade, seria bom que os povos também assistissem: é minha proposta para começar a resolver o conflito que assola o começo deste século.
De todas as soluções propostas nas últimas décadas, é a menos estapafúrdia. Prova disso: com esses filmes ou com outros, ela já está acontecendo.

ccalligari@uol.com.br


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