São Paulo, terça, 2 de dezembro de 1997.




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O ouro do mundo é hoje o audiovisual

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

Não dá mais para segurar. Se o Brasil não se adaptar aos novos tempos "audiovisuais", corre o risco de virar um país sem espelho. A violenta onda de imagens que o mundo está propagando pode nos transformar em passivos repetidores de emissões alheias.
O espantoso é que o governo ainda não entendeu direito a importância real do audiovisual. A nova lei foi boa, mas agora, com os cortes de incentivos que virão, perderá provavelmente a força que fez nascer vários filmes novos. Tudo bem que tem de fechar as contas do Brasil e cortar incentivos. Se for para salvar o Brasil, dane-se o cinema! Só que o raciocínio do governo continua agropastoril, de mecenato, protetivo, culturalista e apequenado de visão.
O audiovisual não é só dinheirinho para fazer filmes. É muito mais que isso. Aqui entram filmes estrangeiros, vídeo, programas de TV e publicidade sem nenhum, nenhum imposto de importação. Será que o governo não sabe que filme impresso (esse lixo importado que nos infesta) não paga imposto nenhum, mas que filme "virgem" tem de pagar?
"Por quê?", perguntarão os idiotas. Porque pela lógica da dominação é preciso que a gente assista a filmes estrangeiros livres de impostos e que pague caro pelo filme "virgem" para fazer os nossos. Isso é artigo pétreo do Gatt (Acordo Internacional de Tarifas) há mais de 30 anos. Não adianta cortar incentivos de US$ 60 milhões por ano, que é o que gastamos em 96-97, e deixar sangra pelas nossas fronteiras US$ 2,5 bilhões de royalties e de "fees" para assistirmos a essa maçaroca anticivilização que nos deturpa.
Não adianta cortar incentivos de filmes que geram emprego, novos impostos, novos lucros, giros, festivais, vendas internacionais, cultura popular se a sangria de verbas é imensa e crescente. Dentro de alguns anos, estaremos pagando US$ 10 bilhões para virarmos macacos de auditório do delírio americano.
Na Espanha, os estrangeiros têm de produzir. Na França, há cota de telas. Aqui, nada. Estamos bobeando como compradores e como produtores. O mundo precisa de nossa produção de cinema e TV. Basta ligar a TV a cabo e ver a demanda crescente por imagens. Alimentar estas bocas-de-fogo dos satélites, "cables" e TV paga do mundo inteiro não é fácil.
Mas no Brasil existe a crença de que audiovisual é coisa "mole", "soft", abstrata, supérflua, preconceito herdado dos tempos do rádio, dos tempos do beletrismo acadêmico. A indústria do audiovisual é poder, governantes! Audiovisual é hoje uma das indústrias mais fortes do universo, controlando corações e mentes e, mais que isso, vendendo produtos (basicamente americanos) para o mundo.
Vamos agir, nem que seja, ao menos, para deter a sangria de dólares desta hemorragia endividada a que se dá o nome de Brasil. Será que ninguém saca isso? Será que o governo acha que os cineastas querem apenas "um tutuzinho para fazer filminhos, senão eles gritam no jornal, e então tem de dar uma graninha para esses chatos ficarem quietos"?
Até tem uns babacas assim, é verdade, mas o importante é o Brasil perceber que precisa do audiovisual como precisou da siderurgia há 60 anos, que o ferro, o aço do mundo hoje é o audiovisual. A visão puramente poupadora, "restritiva" não basta. Precisamos de uma política cultural protetiva, pois não podemos continuar nesta sangria desatada de divisas, cortando gastos de esparadrapo enquanto o sangue jorra aos bilhões.
A política de contenção de incentivos é correta, mas deve atacar grandes alvos. Por que não se acaba com a pavorosa e corrupta Zona Franca e outros terríveis sangradouros? Isso ninguém faz. Amazoninos, mirandas e barbalhos não deixam.
Cinema pode cortar. Cineastas estão acostumados a esta vida feita de dois sentimentos básicos e oscilantes: ansiedade e frustração. Há 30 anos eu assisto a esta inana: um bando de trágicos artistas tentando fechar uma equação, sob promessas espasmódicas do governo impotente diante do capital externo.
Já conquistamos o "mercado" várias vezes, como nos anos 70, mas eles (os gringos) vêm e estragam tudo. A lógica mercantil da dependência se impõe logo, logo, seja por um golpe de Estado, seja por inflação, por delírios políticos como foi Collor, seja por "crashes" internacionais reguladores de nossa situação de dependentes. "Voltem para suas senzalas, escravos!", é o que nos dizem as Bolsas, depois de algum tempo de ilusório progresso.
O Brasil tem de entender que o audiovisual fraco é a morte da alma do país. Se não for feita uma reforma fiscal nestas importações sem taxas, nesta invasão psíquica, terminaremos sem boca, só com olhos e ouvidos.
Há 30 anos, só tínhamos quatro ou cinco câmeras no Brasil. Éramos um grande país sem rosto. Hoje, ao contrário, temos rostos demais nos olhando. O Brasil continua miserável como nos tempos do cinema novo, só que agora sua miséria (ou sua "pós-miséria"?) se esconde numa superpopulação de estímulos visuais, nos mil olhos do audiovisual mundial. O excesso nos dá uma impressão de abundância.
Mas é miséria, miséria disfarçada, barbárie travestida de civilização. É a estupidez voraz e imperialista, escondida atrás do "progresso tecnológico". Nunca o cinema americano foi tão caro, tão tecnicista e tão ruim. Saudades de Kubrick, Fuller, Hawks, Ford. O que contribui hoje o cinema americano para a arte ou para a consciência do mundo? Pula à vista a monotonia dramatúrgica dos filmes, todos com a mesma receita narrativa, desde os draminhas existenciais doces e até a violência dos efeitos especiais.
Todos têm a mesma "missão" de nos fascinar com o mal para nos vender um "bem". Um "bem" que é apenas o elogio de uma esperançazinha de redenção e felicidade vagabunda dentro do sistema global-americano de viver.
Um cinema brasileiro forte e co-produzindo com as redes de TV poderá criar um produto cultural diferenciado, deixando clara a nossa "latinidade". E não venham defender ingenuamente um "internacionalismo liberal" que nos apassiva. Globalizar não é perder a alma.
P.S.: Com "estresse" de Brasil, tiro férias. Só volto em janeiro. Beijos aos que fazem o favor de me ler.



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