São Paulo, sábado, 02 de dezembro de 2000

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RESENHA DA SEMANA

Animal às avessas

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Uma das maiores desilusões para o escritor estreante é descobrir que não basta escrever um bom livro (e ter a chance de publicá-lo); é preciso que falem dele para que passe a existir. Daí o poder perverso da mídia.
Tem que contar, ainda por cima, com a sorte de ser resenhado por alguém que entenda o seu projeto e o critique dentro dos limites de sua proposta, em vez de lhe impor parâmetros que não são os seus. Porque, como regra geral, as críticas revelam mais sobre os próprios críticos e seus horizontes do que sobre os objetos criticados.
"Cabeça, Corpo, Caveira e Alma" é o livro de estréia de Fernando Burjato, 28. É comum entre resenhistas citar a irregularidade dos livros de estréia, ainda mais quando são coletâneas de contos. É um clichê, uma forma de se defender por ressalvas dos eventuais erros de avaliação. Outro clichê paternalista que costumam aplicar aos jovens escritores estreantes diz que a poesia pode ser feita na juventude, mas o romance depende do amadurecimento e do acúmulo de experiência.
Os contos de Burjato podem até ser irregulares, sua prosa pode ainda não estar pronta (alguns contos às vezes parecem girar em falso sobre impressões pessoais um tanto ensimesmadas, como se ainda fossem ensaios de uma fabulação romanesca), mas deixam claro que há ali um escritor em gestação. Porque tem idéias surpreendentes.
Burjato é um escritor de parábolas. Há um conto sobre um sujeito que descobre que as batidas dos talheres nos pratos formam uma linguagem que os outros "falam" durante as refeições: "Aquilo não se tratava de uma série de sons acidentais, mas de um discurso". Há a história de um "animal às avessas", que o narrador transforma em bicho de estimação. Há o caso do homem que olha para trás enquanto vai deixando pegadas na neve, "pois se aquelas marcas fossem apagadas, sabia que poderia tanto morrer repentinamente quanto viver para sempre". Há o paleontólogo que descobre que os dinossauros eram, no fundo, macacos. Ou o sujeito "incapaz de falar, a não ser uma única frase". Ou o homem que perde a visão, apenas para perceber que os outros vêem tão pouco quanto ele.
Burjato procura um ponto de vista que escape ao lugar-comum. E muitas vezes o encontra, com bom humor. O problema das parábolas é que nelas é grande o risco de as idéias serem melhores do que sua formulação. E talvez seja essa a maior armadilha dessa prosa.
Burjato optou por escrever seu livro "à maneira de um escritor", com um certo preciosismo de linguagem, lançando mão de expressões como "uma sorte de" (em vez de "um tipo de"), "como se fora", "certa feita", "bastar-lhe-ia", "contar-lhe-á" etc. E se de início o recurso a uma "língua culta" pode parecer irônico e caricatural, efeito de distanciamento, com a insistência ao longo das histórias essa primeira impressão torna-se bem menos evidente.
O preciosismo tem o efeito de fazer sobressair, por contraste, eventuais descuidos gramaticais e de construção das frases, que numa linguagem assumidamente mais suja seriam irrelevantes. Embora pontuais, quando os erros aparecem, além de comprometer a clareza, acabam ganhando um peso e um destaque que não precisavam ter.
Nada disso, porém, compromete a imaginação do autor. Tanto o caso do homem que perde a visão e termina por não saber mais se o que antes via era realidade ou fruto da sua imaginação como o do paleontólogo que revoluciona as teses sobre as origens da vida animal na Terra são ilustrativos de uma prosa que está tentando dizer alguma outra coisa, nem que seja por metáforas, pois acredita no poder renovador da fabulação.
É como se uma literatura idiossincrática e original estivesse em germinação ali dentro e já insinuasse, em potencial, o nascimento de um escritor que se recusa a ver apenas o que os outros vêem e se debate para mostrar o mundo "às avessas", como quem está "prestes a fazer uma grande descoberta". Agora, é esperar para ver.

Cabeça, Corpo, Caveira e Alma
   
Autor: Fernando Burjato
Editora: Bom Texto (tel. 0/xx/21/494-6658; e-mail: bomtexto@bomtextoeditora.com.br)
Quanto: R$ 20 (144 págs.)


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