São Paulo, quinta-feira, 02 de dezembro de 2004

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CRÍTICA

Romance supera "predecessor", mas tem problemas

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não há mesmo plágio em "A Vida de Pi". Por mais importante que seja a idéia de um enredo, ela é apenas um ponto de partida, um dos fatores que, unidos, configuram um romance. Ou seja, se não teve o mérito de inventar a premissa do livro, Yann Martel soube desenvolver a sua versão da história com competência, superando em alcance a sua predecessora ("Max e os Felinos" não é uma das obras de primeira linha de Moacyr Scliar, entre as quais se pode citar "O Centauro no Jardim" ou "A Estranha Nação de Rafael Mendes").
Na verdade, a própria concepção de plágio é muito controversa em literatura. Autores fundamentais como Ricardo Piglia ou Georges Perec assentam parte decisiva de sua construção ficcional em uma espécie de "teoria do empréstimo", que é anunciada de modos muito sinuosos. Além disso, já se falou até -de maneira um pouco exagerada- que "todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto" (para lembrar uma famosa definição de Julia Kristeva).
Deixando essa questão de lado, é preciso dizer que, apesar de suas qualidades, "A Vida de Pi" tem problemas. A primeira parte da narrativa, cerca de cem inflacionadas páginas, destoa do restante. Nela, o autor parece se propor a fornecer ao leitor o instrumental "zoológico" e religioso para acompanhar o que virá a seguir.
Isso provoca a impressão de se estar lendo uma mistura da revista "National Geographic" e de um manual comparativo de crenças, e até boas idéias, como a de o protagonista, Piscine (Pi) Molitor Patel, resolver se tornar ao mesmo tempo cristão, muçulmano e hinduísta, terminam se diluindo.
A partir do naufrágio, no início da segunda parte, no qual o personagem perde a família e se vê confinado a um barco com alguns animais sobreviventes, o texto ganha força e não pára de crescer, com destaque para a relação de complexa interdependência que Pi e o tigre de Bengala, chamado Richard Parker, desenvolvem. A "amizade" é tratada com precisão por Martel, em bela alternância de ritmos lentos e acelerados.
Na terceira parte, o registro do texto se torna mais irônico e surpreendente. O personagem consegue se salvar e precisa contar a sua experiência para uma dupla de funcionários do governo japonês. Aí, o autor parece antever toda a polêmica que seu livro causaria e demonstra com virtuosismo e humor como uma mesma história pode ser recontada de modo absolutamente diferente. E como ambas podem ser muito boas.


Adriano Schwartz é doutor em teoria literária pela USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges e a Inquietude do Romance em "O Ano da Morte de Ricardo Reis'" (Globo).

A Vida de Pi
   
Autor: Yann Martel
Tradução: Alda Porto
Editora: Rocco
Quanto: R$ 39,50 (354 págs.)



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