São Paulo, sexta-feira, 02 de dezembro de 2005

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CINEMA/ANÁLISE

Quarto Harry Potter capta dificuldade em discernir "o mal"

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

A repercussão do lançamento simultâneo do quarto filme e da tradução do sexto livro da série Harry Potter demonstra que o fenômeno continua a mobilizar milhares de leitores e espectadores ao redor do mundo.
As aventuras de Harry Potter se estruturam a partir das oposições básicas do melodrama. Mas a fórmula não explica tudo. A graça está no que justamente escapa ao esquema.
Os filmes vieram depois dos livros e são duramente julgados pelos fãs mirins da turma de Hogwarts, implacáveis observadores da superioridade da linguagem escrita sobre o cinema. "O Cálice de Fogo" perde em sutileza. Não traduziu em imagens a fantástica peleja mundial de quadribol, o esporte local; abreviou as tensões colegiais que isolaram Harry ao longo da aventura; poupou a imprensa da ácida crítica proferida por J.K. Rowling no livro etc.
Mas o filme de Mike Newell vai além dos três primeiros longa-metragens estrelados pelos heróis bruxos. Ele capta o que talvez seja a característica mais marcante da série: a dificuldade de discernir quem é do mal -um mal fundamentalista que vai se adensando no correr de tempos cada vez mais sombrios.
A entidade maléfica cresce e ganha corpo, ao longo dos anos, às custas de literalmente sugar a energia vital de seus inimigos, especialmente Harry. Nesse quarto filme ganha plena forma humana.
Harry está longe de ser um herói bem comportado. É teimoso, frágil, nem sempre diz a verdade. Como seus amigos, muitas vezes infringe as normas. Em torno desse pólo do bem, gravitam personagens com funções essenciais de apoio, mas cuja posição pode ocultar surpresas.
O disfarce, a identidade trocada, é um artifício clássico do gênero. Aqui a dificuldade de discernimento aparece como elemento recorrente. Harry, Ron e Hermione, os três jovens heróis, colegas de classe, convivem com vários professores e funcionários da escola, que, como eles, temem e se opõem aos "Death Eaters", grupo de apoiadores do inominável "você sabe quem". Convivem também com militantes confessos das artes da magia negra. Mas é justamente na zona cinzenta que envolve os dois núcleos que as coisas acontecem.
Em uma seqüência emblemática de revelação no fim de "O Cálice de Fogo", literalmente caem sucessivas máscaras, de alguém que parecia apoiar, quando empurrava o herói para a armadilha que poderia ser fatal.
Também o sexto livro, "Harry Potter e o Enigma do Príncipe", recém-lançado com as conhecidas opções questionáveis de tradução, contém histórias sobre falsos apoiadores. Não vamos dar nome aos bois para não estragar a eventual surpresa de quem não leu o livro ou viu o filme.
Em tempos de insegurança geral, como discernir? Às vezes a dúvida perpassa vários episódios. Conclusões de um livro podem se mostrar provisórias em histórias futuras. Os pólos da oposição maniqueísta são menos importantes. Talvez a popularidade do bruxo aprendiz tenha a ver com a sensação de insegurança permanentemente renovada que essas indefinições provocam.


Esther Hamburger, antropóloga e professora da ECA-USP, escreve na Ilustrada quinzenalmente, às quartas-feiras. Excepcionalmente, este texto é publicado hoje.

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