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CINEMA/ANÁLISE
Quarto Harry Potter capta dificuldade em discernir "o mal"
ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA
A repercussão do lançamento simultâneo do quarto
filme e da tradução do sexto livro
da série Harry Potter demonstra
que o fenômeno continua a mobilizar milhares de leitores e espectadores ao redor do mundo.
As aventuras de Harry Potter se
estruturam a partir das oposições
básicas do melodrama. Mas a fórmula não explica tudo. A graça está no que justamente escapa ao
esquema.
Os filmes vieram depois dos livros e são duramente julgados pelos fãs mirins da turma de Hogwarts, implacáveis observadores
da superioridade da linguagem
escrita sobre o cinema. "O Cálice
de Fogo" perde em sutileza. Não
traduziu em imagens a fantástica
peleja mundial de quadribol, o esporte local; abreviou as tensões
colegiais que isolaram Harry ao
longo da aventura; poupou a imprensa da ácida crítica proferida
por J.K. Rowling no livro etc.
Mas o filme de Mike Newell vai
além dos três primeiros longa-metragens estrelados pelos heróis
bruxos. Ele capta o que talvez seja
a característica mais marcante da
série: a dificuldade de discernir
quem é do mal -um mal fundamentalista que vai se adensando
no correr de tempos cada vez
mais sombrios.
A entidade maléfica cresce e ganha corpo, ao longo dos anos, às
custas de literalmente sugar a
energia vital de seus inimigos, especialmente Harry. Nesse quarto
filme ganha plena forma humana.
Harry está longe de ser um herói
bem comportado. É teimoso, frágil, nem sempre diz a verdade.
Como seus amigos, muitas vezes
infringe as normas. Em torno desse pólo do bem, gravitam personagens com funções essenciais de
apoio, mas cuja posição pode
ocultar surpresas.
O disfarce, a identidade trocada,
é um artifício clássico do gênero.
Aqui a dificuldade de discernimento aparece como elemento
recorrente. Harry, Ron e Hermione, os três jovens heróis, colegas
de classe, convivem com vários
professores e funcionários da escola, que, como eles, temem e se
opõem aos "Death Eaters", grupo
de apoiadores do inominável "você sabe quem". Convivem também com militantes confessos das
artes da magia negra. Mas é justamente na zona cinzenta que envolve os dois núcleos que as coisas
acontecem.
Em uma seqüência emblemática de revelação no fim de "O Cálice de Fogo", literalmente caem
sucessivas máscaras, de alguém
que parecia apoiar, quando empurrava o herói para a armadilha
que poderia ser fatal.
Também o sexto livro, "Harry
Potter e o Enigma do Príncipe",
recém-lançado com as conhecidas opções questionáveis de tradução, contém histórias sobre falsos apoiadores. Não vamos dar
nome aos bois para não estragar a
eventual surpresa de quem não
leu o livro ou viu o filme.
Em tempos de insegurança geral, como discernir? Às vezes a dúvida perpassa vários episódios.
Conclusões de um livro podem se
mostrar provisórias em histórias
futuras. Os pólos da oposição maniqueísta são menos importantes.
Talvez a popularidade do bruxo
aprendiz tenha a ver com a sensação de insegurança permanentemente renovada que essas indefinições provocam.
Esther Hamburger, antropóloga e professora da ECA-USP, escreve na Ilustrada quinzenalmente, às quartas-feiras.
Excepcionalmente, este texto é publicado hoje.
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