São Paulo, sábado, 02 de dezembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MANUEL DA COSTA PINTO

Ressurreição e recusa

Augusto de Campos faz da tradução um acontecimento lingüístico que ilumina um valor inalienável da palavra

OS POETAS concretos consagraram a idéia de que a tradução é a melhor forma de interpretação da obra literária.
"Poesia da Recusa", coletânea de 15 anos do trabalho tradutório de Augusto de Campos, é a confirmação (almejada) e a refutação (involuntária) desse postulado.
Confirmação: suas "transcriações" (como preferem os concretos) de autores como Mallarmé, Yeats e Wallace Stevens, além de um conjunto de poetas russos (Blok, Akhmátova, Pasternak, Mandelstam, entre outros), são momentos raros de ressurreição, na língua de chegada, dos procedimentos poéticos identificados no original.
Refutação: cada seção do livro é precedida de comentários que constituem momentos luminosos de ensaísmo, convidando-nos a parafrasear aquela idéia inicial e dizer que a melhor forma de tradução é menos o artefato final (o poema vertido) do que uma hermenêutica que descobre no ato criativo o rigor de uma necessidade.
O termo "necessidade" deve ser entendido aqui em seu sentido lógico, como decorrência obrigatória de determinada premissa. Pois é essa a aposta da aventura transcriadora de Augusto de Campos: fazer da tradução um acontecimento lingüístico que ilumine um valor inalienável da palavra poética.
No caso, esse valor é a "recusa", categoria ao mesmo tempo estética e ética. Só se traduz aquilo que escapa ao "aviltamento dos cosméticos culturais" -o que assinala um novo ponto de inflexão em seu percurso.
Há algum tempo, a tríade dos concretos (composta por ele, seu irmão Haroldo e Décio Pignatari) elegia apenas os "inventores", em contraposição aos "diluidores", segundo a nomenclatura de Pound.
Agora, Augusto opta por um critério menos construtivista, traduzindo autores que "manifestam [...] formas de desacordo com a sociedade ou com a vida". A formalização da experiência continua no centro da expressão poética, mas ela deverá fundar sua razão de ser. Resulta daí a convergência entre filosofia da composição e exaltação existencial nos poetas traduzidos, alguns deles estranhos ao "paideuma" concreto, que assim se amplia.
A inclusão do barroco alemão Quirinus Kuhlmann, por exemplo, é um achado singular: uma poesia de "especulações permutatórias", com variações monossilábicas que antecipam os jogos matemáticos dos autores do Oulipo (grupo dos anos 60 capitaneado por Raymond Queneau e Georges Perec) e estão a serviço das visões místicas desse autor queimado vivo em 1689.
Vivências traumáticas atravessam o livro como critério unificador: blasfêmias e metáforas premonitórias de suicidas como Iessiênin, Marina Tzvietáieva e Hart Crane aparecem ao lado das anti-elegias e da "explosão sonoro-vivencial" do suicida etílico Dylan Thomas. De cada um deles, Augusto de Campos recriou uma preparação para morte que é, ao mesmo tempo, um gesto de recusa que deflagra a poesia.


POESIA DA RECUSA     
Autor: Augusto de Campos
Editora: Perspectiva
Quanto: R$ 54 (368 págs.)


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Mostra aborda questões sociais na América do Sul
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.