São Paulo, sábado, 02 de dezembro de 2006

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Crítica/Bienal em questão

Proposta é consistente e inovadora

Novidades e conceitos adotados pela instituição e curadoria representam um aporte importante para o circuito de arte

Projeto assumido pela curadoria tirou da Bienal o caráter espetacular e efêmero, investindo na formação e no intercâmbio


FABIO CYPRIANO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Como Viver Junto", a 27ª edição da Bienal, é resultado de uma série de novos conceitos na realização das bienais paulistanas: teve seu time curatorial escolhido em processo de seleção por projeto, acabou com as representações nacionais, estendeu a temporalidade da mostra com seminários, criou residências artísticas.
Tudo isso representou um significativo aporte ao circuito artístico da cidade, pois tirou da Bienal o caráter espetacular e efêmero, investindo na formação e no intercâmbio. Palestras como as dos artistas Rirkrit Tiravanija e Marjetica Potrc ou do professores em arquitetura Eyal Weyzman e Beatriz Colomina devem ser considerados pontos altos da Bienal.
Criada a partir de conceitos do artista Hélio Oiticica (1937 1980), a Bienal, tendo à frente Lisette Lagnado, é, claramente, construída a partir de um projeto consistente e ai está seu grande mérito. Como uma lente, esse projeto pode direcionar o olhar do visitante. E surge aí um dos dilemas da mostra: certos trabalhos se tornam ilustração das teses dos curadores.
Um exemplo disso está nas fotos do sul-africano Guy Tillim, realizadas no Congo, com registros da casa do ex-ditador do país e das eleições. Contudo, o caráter documental das fotos é seu próprio limite, mesmo problema que ocorre com Randa Shaath e suas fotos de coberturas de edifícios e de calçadas no Cairo. Nesses casos, é patente a ilustração do "como viver junto": no primeiro caso como conflito, no segundo como ocupação do mesmo espaço. Os curadores usam essas obras para abordar temas, como a ditadura ou o uso informal dos espaços. Por isso, as legendas tornam-se tão marcantes na mostra, explicando por demais as obras, o que, às vezes, as reduz.
Os retratos de índios numerados, de Claudia Andujar, estão nesse contexto, mas possuem uma contundência que escapa ao mero registro e apresentam complexidade superior aos trabalhos dos fotojornalistas, até mesmo na maneira como a obra está exposta.
Esse dilema, contudo, está presente nas próprias propostas de Oiticica, com o "adeus ao esteticismo", e nas discussões da arte conceitual nos anos 70 e 80. Assim, ganha extremo sentido a presença de contemporâneos históricos como Gordon Matta-Clark, Ana Mendieta e Dan Graham. Por tudo isso, tornam-se emblemáticas obras que conseguem questionar conceitos de Oiticica, como a loja de Laura Lima e a instalação de Thomas Hirschhorn. A artista propõe que visitantes vistam trajes. Mas, diferentemente dos Parangolés, para serem usados caminhando-se na mostra, eles são apenas para serem experimentados como numa loja, produto de fetiche, o que acaba sendo irônico.
Já Hirschhorn, com "Restaure Agora", apresenta uma instalação com dezenas de livros de filosofia e ferramentas, ambos símbolos da transformação -seja pela idéia, seja pela ação, em meio a fotos de pessoas esquartejadas. Livros e ferramentas estão amarrados, não servem. Em monitores, quem se movimenta é o artista, apenas com os braços, sem sair do lugar. Seu silêncio é revelador.
Os curadores da Bienal também assumiram um risco: obrigar os artistas a apresentarem novas obras. Especialmente no Brasil, onde há tão pouco incentivo à produção, essa proposta não deixa de ser valiosa, mas, ótimos artistas como Marepe, com seus guarda-chuvas, ou Jarbas Lopes, com o resultado de sua expedição à Amazônia, têm trabalhos aquém do que já realizaram.
O que os valoriza, no entanto, é a proposta de apresentar várias obras do mesmo artista, sinal de de respeito dos curadores aos artistas, valorizando sua obra e evitando sua instrumentalização. Também se percebe na mostra as dificuldades da instituição em lidar com obras que extravasam o campo artístico, caso positivo do grupo Superflex. Proibido de apresentar o "Guaraná Power", a bebida que de fato contém guaraná, ao contrário de produtos de grandes corporações, a censura foi assumida e incorporada à exposição. Já "Fogo Amigo", de Marcelo Cidade, um bloqueador de celulares, não funciona, e o pedestal com o aparelho representa a falta de apoio da instituição ao trabalho.
Acabar com as representações nacionais tornou a mostra menos suntuosa, com um tom mais intimista -e, em alguns casos, é preciso atenção redobrada para descobrir trabalhos como o vídeo "Seqüência da Tempestade", de Shwan Gladewll, uma surpreendente fusão de Caspar David Friedrich com skate e samba, os desenhos alucinantes de Simon Evans, ou a instalação misteriosa de Renata Lucas. É no silêncio, como na gestualidade de Hirschhorn, afinal, que a mostra cumpre seu programa. Seria essa a nova política?


27ª BIENAL DE SÃO PAULO     

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