São Paulo, quarta-feira, 02 de dezembro de 2009

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MARCELO COELHO

Mintam para mim


O problema, começo a achar, não é a falta de memória do eleitor. É a indiferença mesmo


ACOMPANHAR AS séries americanas na TV a cabo é uma proeza de que sou incapaz. Acho dificílimo me acertar com os horários de cada uma delas, se é que consigo localizá-los na revista que mandam para casa.
Aliás, não localizo nem a revista. Mesmo se localizasse, não sei qual o número do canal no meu controle remoto. O controle remoto também não é sempre que aparece.
Melhor comprar de uma vez o pacote completo em DVD; foi o que fiz com "Engana-Me se Puder", cuja primeira temporada ainda está em cartaz no canal Fox, em dias e horários indevassáveis.
Em inglês, a série se chama "Lie to Me" (minta para mim). Estou gostando bem mais do que pensava. O ponto de partida, convenhamos, é um bocado difícil de acreditar.
Tim Roth, com cara de pouquíssimos amigos, faz o papel do dr. Cal Lightman, especialista em decifrar expressões faciais. Percebe na hora, pela ausência de uma ruguinha no canto do olho ou pela ligeira inclinação de um ombro, quando alguém está mentindo -ou se preparando para disparar uma metralhadora na multidão.
A relativa ingenuidade do método analítico (uma mulher de botox pode induzir a erros de diagnóstico) não prejudica o interesse dos episódios. O dr. Lightman percebe quando um suspeito conta mentiras, mas nem por isso sabe qual a verdade que se está tentando ocultar.
O didatismo de algumas cenas é quase ridículo. "Veja", explica o detetive a seus ajudantes, "estas expressões são típicas de quem está prestes a cometer um atentado". Sobrancelhas em "V", queixo para a frente, lábios comprimidos... Estamos avisados.
O bom é que as explicações são acompanhadas de slides e videozinhos tirados da vida real. O rosto de Bill Clinton falando sobre o caso Monica Lewinsky é analisado em câmera lenta; numa fala de Barack Obama, destinada a elogiar seu adversário John McCain, descobre-se um gesto obsceno inconsciente quando o democrata coça o nariz com o dedo médio...
Tudo se torna maravilhosamente legível. Não existem diferenças culturais significativas: a dor de um coreano se reflete no seu rosto do mesmo modo que a de um polonês. Cada cultura inventa seus modos de disfarce -mas o animal humano está presente em todas elas, por uma fração de segundo que seja, pronto a dar o bote. E a ser capturado pelo dr. Lightman.
Não sei se existe um episódio situado entre profissionais do fingimento, como atores ou campeões de pôquer. Entre políticos, e não me refiro apenas aos brasileiros, seria até covardia; as expressões de Tony Blair e George W. Bush constam do bê-á-bá do dr. Lightman.
Lembro-me de um discurso emocionante do então senador José Roberto Arruda, negando participação no caso dos votos eletrônicos fraudados. Ele invocava os próprios filhos para atestar inocência. Não sei se acreditei; mas tive vontade de acreditar. No dia seguinte, Arruda confessava tudo.
E daí? Foi reeleito, usa dinheiro vivo para comprar panetones aos necessitados, e aquela mentira foi esquecida. Ou melhor, não foi. O problema, começo a achar, não é a falta de memória do eleitor. É sua indiferença mesmo.
Ao vencedor, os panetones. Não deixo, em todo caso, de ter inveja do dr. Lightman. Gostaria de poder "ler" um rosto como se fosse um texto cristalino.
Nem sempre, em todo caso, mentira e verdade se separam com clareza. Posso arranjar uma desculpa razoavelmente verdadeira para não ir a um batizado: "tenho de trabalhar etc." A verdade é que não quero ir, mas não menti.
De resto, a vida do detetive não é nada fácil. Reagindo a qualquer mentira, ele está condenado à solidão. Melhor do que ler rostos, portanto, é o que acabo fazendo boa parte do tempo: ler textos.
Seria necessário entender de grafologia, examinar os rascunhos de cada escrito, para identificar as hesitações e impulsos rápidos de cada autor. O famoso artigo de César Benjamin sobre Lula mereceria um estudo desses. Mas às vezes uma análise textual não exige tanto trabalho assim. Eis, por exemplo, a frase de um artigo da ex-prefeita Marta Suplicy, publicado nesta segunda-feira: "A experiência mostrou que devemos ser extremamente cuidadosos quando mexemos com o bolso do povo".
Ah. Tratava-se de uma crítica ao aumento do IPTU decidido pelo prefeito Kassab. Ainda bem que a ex-prefeita é psicanalista -e sabe se defender de eventuais atos falhos.

coelhofsp@uol.com.br


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