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Cem anos de "J'Accuse", as Listas Negras
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
A manchete de jornal mais
famosa de todos os tempos
completa o primeiro centenário
no dia 13. O texto é de Émile Zola,
o jornal é "L'Aurore",
recém-lançado. O diretor
determina que ocupe toda a
primeira página e parte da
segunda.
É do redator-chefe a idéia do
título forte, emocionado e
emocionante, rasgando a página
de lado a lado. A carta aberta ao
presidente da República termina
com oito sentenças curtas que
começam com a mesma
expressão.
Numa opção fulgurante que
marcará a história da França e do
jornalismo, o redator-chefe puxa
a palavra-chave da candente
litania e a faz espalhar-se pelas
seis colunas: "J'Accuse" (Eu
Acuso).
O jornal vende na manhã
seguinte 300 mil exemplares,
recorde de circulação européia,
que as resfolegantes rotativas a
vapor poderiam ultrapassar caso
houvesse mais papel no estoque.
Émile Zola, criador do romance
social, autor de um vasto painel
literário sobre os despossuídos,
articulista rigoroso e
apaixonado, é, no momento, o
principal baluarte de uma
cruzada para reparar um
tremendo erro judiciário que há
três anos divide a França e
apaixona o mundo.
Georges Clemenceau,
redator-chefe, autor do
magnífico berro jornalístico, é
um parlamentar republicano no
ostracismo e, a partir dessa
manchete, entrará para a história
francesa e européia pela alcunha
O Tigre.
A vítima do erro judiciário
chama-se Alfred Dreyfus,
discreto capitão de artilharia,
francês da Alsácia, de origem
judaica. Uma trama para
incriminá-lo como responsável
pela venda de segredos militares
à Alemanha é revelada pelos
pasquins de direita
(monarquistas, clericais,
nacionalistas e anti-semitas),
ligados aos setores mais
extremados do Exército francês.
A campanha de difamação
alarga-se para o resto da
imprensa e cria um clima de
histeria nacional que favorece a
condenação do acusado num
processo militar, sumário e
sigiloso.
A degradação pública do capitão
Dreyfus e a pena de prisão
perpétua na Ilha do Diabo, na
Guiana, é assunto de primeira
página em todo o mundo,
embora os jornais ainda utilizem
desenhos em lugar de
fotografias.
Em Londres, onde está exilado, o
grande jurista e jornalista
brasileiro Rui Barbosa revolta-se
com a evidente injustiça e
despacha pelo primeiro paquete
para o "Jornal do Commercio"
(Rio) uma de suas "Cartas de
Inglaterra" publicada 15 dias
depois, também na primeira
página inteira, mas com um
discreto título de uma coluna,
como é hábito.
O jornalismo horizontal, de
combate, só será incrementado
três anos depois, com a vigorosa
manchete de Clemenceau. O
próprio Dreyfus reconhecerá que
o texto de Rui Barbosa foi a
primeira defesa pública do seu
caso.
Ninguém ousa levantar a voz em
defesa do acusado. Mesmo os
dois principais personagens do
"J'Accuse" (Zola e Clemenceau),
no início, estão convencidos de
que Dreyfus é um reles traidor,
judeu sujo. Apenas o irmão
Mathieu, a mulher Lucie e um
advogado anarquista, também
escritor e jornalista, Bernard
Lazare, acreditam na sua
inocência.
O episódio está minuciado em
dois livros recentes: um do
próprio Rui Barbosa, "O Processo
do Capitão Dreyfus", editora
Giordano, 1995, e "Diários
Completos do Capitão Dreyfus",
Imago, 1995, com tradução de
Bernardo Ajzenberg, fartamente
ilustrados, com material
adicional deste articulista.
A diligência de Mathieu Dreyfus e
Lazare quebra o muro de
arrogância e intolerância.
Juntam evidências, mostram a
Zola, que, finalmente, adere à
causa. No prestigioso "Figaro",
sai a primeira de suas peças
épicas. A frase final também
entrará para a história: "La Vérité
en Marche".
Segundo artigo de Zola, "Le
Syndicat" enfrenta a alcunha
que a imprensa de direita joga
contra todos os que ousam aderir
às hostes dreifusistas. Zola ainda
consegue escrever um terceiro
artigo, "Le Procès Verbal", mas a
série do "Figaro" é bruscamente
interrompida por influência do
departamento comercial -os
assinantes estão cancelando as
assinaturas!
Zola não se abate, escreve dois
panfletos (veículo então muito
usado) com grande repercussão
e, em 10-11 de janeiro de 1898,
diante de nova farsa
jurídico-militar que absolve o
capitão Esterhazy -escroque,
agente duplo, verdadeiro
culpado da venda dos segredos
militares-, resolve publicar a
carta aberta ao presidente Félix
Faure que Clemenceau converte
na manchete do século (a versão
panfletada teria saído dias
antes).
Zola está consciente de que
infringe a Lei de Imprensa de
1881. A estratégia é converter o
"affaire" Dreyfus (confinado à
justiça militar, sigilosa) no caso
Zola, que seria julgado pela
justiça comum, pública. Um mês
depois (23 de fevereiro) Zola é
condenado a um ano de prisão e
multa de 3.000 francos.
Foge para a Inglaterra, e a
façanha do heróico escritor que
sacrifica a sua liberdade em
defesa da verdade empolga o
mundo. (Em S. Paulo, cria-se o
Comité Zoliano, com a
participação dos estudantes de
direito e do Centro Socialista. Na
Bahia, funda-se o Clube Émile
Zola, presidido por Juliano
Moreira, o famoso psiquiatra,
que envia ao escritor um livro de
ouro com as 226 assinaturas da
fina flor da elite intelectual).
O "affaire" Dreyfus estende-se
até 1996, quando o Exército
francês, finalmente, reconhece a
inocência do acusado. Mas a
estentórica manchete do Tigre,
monumento ao jornalismo
romântico e devotado -hoje em
desuso- está aí, atual, viva e
oportuna.
O "J'Accuse" de Clemenceau,
cem anos depois, serve para
lembrar que não desapareceu a
soberba e o despotismo nos
clones daqueles que foram os
primeiros algozes de Dreyfus.
As Listas Negras, velha tradição
do jornalismo brasileiro, símbolo
do preconceito e do arbítrio,
continuam funcionando em
algumas redações.
As Listas Negras hoje não são
acionadas pelas autoridades,
anunciantes ou acionistas.
As Listas Negras são obra dos
pequenos ditadores que
trabalham nos desvãos do poder
com a senha "ordens
superiores", jamais emitidas.
As Listas Negras distribuem o
estigma de "persona-non-grata"
sem que seus autores tenham
habilitação moral para isso.
As Listas Negras são alimentadas
pelo despeito e pelo rancor.
As Listas Negras atentam contra
o acesso à informação.
As Listas Negras abusam da
confiança do leitor.
As Listas Negras devem ser
extirpadas.
"J'attend", espero, é o desafio
final de Zola. Prefiro lembrar o
cineasta de "A Fraternidade É
Vermelha", Krysztof Kieslowski:
"Estúpida vaidade pretender ser
o dono da verdade..."
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