São Paulo, sábado, 3 de janeiro de 1998.




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Cem anos de "J'Accuse", as Listas Negras

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

A manchete de jornal mais famosa de todos os tempos completa o primeiro centenário no dia 13. O texto é de Émile Zola, o jornal é "L'Aurore", recém-lançado. O diretor determina que ocupe toda a primeira página e parte da segunda.
É do redator-chefe a idéia do título forte, emocionado e emocionante, rasgando a página de lado a lado. A carta aberta ao presidente da República termina com oito sentenças curtas que começam com a mesma expressão.
Numa opção fulgurante que marcará a história da França e do jornalismo, o redator-chefe puxa a palavra-chave da candente litania e a faz espalhar-se pelas seis colunas: "J'Accuse" (Eu Acuso).
O jornal vende na manhã seguinte 300 mil exemplares, recorde de circulação européia, que as resfolegantes rotativas a vapor poderiam ultrapassar caso houvesse mais papel no estoque.
Émile Zola, criador do romance social, autor de um vasto painel literário sobre os despossuídos, articulista rigoroso e apaixonado, é, no momento, o principal baluarte de uma cruzada para reparar um tremendo erro judiciário que há três anos divide a França e apaixona o mundo.
Georges Clemenceau, redator-chefe, autor do magnífico berro jornalístico, é um parlamentar republicano no ostracismo e, a partir dessa manchete, entrará para a história francesa e européia pela alcunha O Tigre.
A vítima do erro judiciário chama-se Alfred Dreyfus, discreto capitão de artilharia, francês da Alsácia, de origem judaica. Uma trama para incriminá-lo como responsável pela venda de segredos militares à Alemanha é revelada pelos pasquins de direita (monarquistas, clericais, nacionalistas e anti-semitas), ligados aos setores mais extremados do Exército francês.
A campanha de difamação alarga-se para o resto da imprensa e cria um clima de histeria nacional que favorece a condenação do acusado num processo militar, sumário e sigiloso.
A degradação pública do capitão Dreyfus e a pena de prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana, é assunto de primeira página em todo o mundo, embora os jornais ainda utilizem desenhos em lugar de fotografias.
Em Londres, onde está exilado, o grande jurista e jornalista brasileiro Rui Barbosa revolta-se com a evidente injustiça e despacha pelo primeiro paquete para o "Jornal do Commercio" (Rio) uma de suas "Cartas de Inglaterra" publicada 15 dias depois, também na primeira página inteira, mas com um discreto título de uma coluna, como é hábito.
O jornalismo horizontal, de combate, só será incrementado três anos depois, com a vigorosa manchete de Clemenceau. O próprio Dreyfus reconhecerá que o texto de Rui Barbosa foi a primeira defesa pública do seu caso.
Ninguém ousa levantar a voz em defesa do acusado. Mesmo os dois principais personagens do "J'Accuse" (Zola e Clemenceau), no início, estão convencidos de que Dreyfus é um reles traidor, judeu sujo. Apenas o irmão Mathieu, a mulher Lucie e um advogado anarquista, também escritor e jornalista, Bernard Lazare, acreditam na sua inocência.
O episódio está minuciado em dois livros recentes: um do próprio Rui Barbosa, "O Processo do Capitão Dreyfus", editora Giordano, 1995, e "Diários Completos do Capitão Dreyfus", Imago, 1995, com tradução de Bernardo Ajzenberg, fartamente ilustrados, com material adicional deste articulista.
A diligência de Mathieu Dreyfus e Lazare quebra o muro de arrogância e intolerância. Juntam evidências, mostram a Zola, que, finalmente, adere à causa. No prestigioso "Figaro", sai a primeira de suas peças épicas. A frase final também entrará para a história: "La Vérité en Marche".
Segundo artigo de Zola, "Le Syndicat" enfrenta a alcunha que a imprensa de direita joga contra todos os que ousam aderir às hostes dreifusistas. Zola ainda consegue escrever um terceiro artigo, "Le Procès Verbal", mas a série do "Figaro" é bruscamente interrompida por influência do departamento comercial -os assinantes estão cancelando as assinaturas!
Zola não se abate, escreve dois panfletos (veículo então muito usado) com grande repercussão e, em 10-11 de janeiro de 1898, diante de nova farsa jurídico-militar que absolve o capitão Esterhazy -escroque, agente duplo, verdadeiro culpado da venda dos segredos militares-, resolve publicar a carta aberta ao presidente Félix Faure que Clemenceau converte na manchete do século (a versão panfletada teria saído dias antes).
Zola está consciente de que infringe a Lei de Imprensa de 1881. A estratégia é converter o "affaire" Dreyfus (confinado à justiça militar, sigilosa) no caso Zola, que seria julgado pela justiça comum, pública. Um mês depois (23 de fevereiro) Zola é condenado a um ano de prisão e multa de 3.000 francos.
Foge para a Inglaterra, e a façanha do heróico escritor que sacrifica a sua liberdade em defesa da verdade empolga o mundo. (Em S. Paulo, cria-se o Comité Zoliano, com a participação dos estudantes de direito e do Centro Socialista. Na Bahia, funda-se o Clube Émile Zola, presidido por Juliano Moreira, o famoso psiquiatra, que envia ao escritor um livro de ouro com as 226 assinaturas da fina flor da elite intelectual).
O "affaire" Dreyfus estende-se até 1996, quando o Exército francês, finalmente, reconhece a inocência do acusado. Mas a estentórica manchete do Tigre, monumento ao jornalismo romântico e devotado -hoje em desuso- está aí, atual, viva e oportuna.
O "J'Accuse" de Clemenceau, cem anos depois, serve para lembrar que não desapareceu a soberba e o despotismo nos clones daqueles que foram os primeiros algozes de Dreyfus.
As Listas Negras, velha tradição do jornalismo brasileiro, símbolo do preconceito e do arbítrio, continuam funcionando em algumas redações.
As Listas Negras hoje não são acionadas pelas autoridades, anunciantes ou acionistas.
As Listas Negras são obra dos pequenos ditadores que trabalham nos desvãos do poder com a senha "ordens superiores", jamais emitidas.
As Listas Negras distribuem o estigma de "persona-non-grata" sem que seus autores tenham habilitação moral para isso.
As Listas Negras são alimentadas pelo despeito e pelo rancor.
As Listas Negras atentam contra o acesso à informação.
As Listas Negras abusam da confiança do leitor.
As Listas Negras devem ser extirpadas.
"J'attend", espero, é o desafio final de Zola. Prefiro lembrar o cineasta de "A Fraternidade É Vermelha", Krysztof Kieslowski: "Estúpida vaidade pretender ser o dono da verdade..."




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