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CARLOS HEITOR CONY
Relembrando Otto Maria Carpeaux
A Topbooks acaba de lançar "Ensaios Reunidos - Volume 2", com trabalhos de Otto
Maria Carpeaux publicados entre
1946 e 1971 em diversos jornais e
revistas. Em geral, faço restrições
a este tipo de coletânea que recolhe artigos, crônicas, contos, ensaios ou mesmo poemas de determinados autores que espalharam
textos muitas vezes circunstanciais, em longa e constante atividade na imprensa. Releve-se a
boa intenção e a honestidade dos
pesquisadores, mas, em princípio,
um autor com acesso às editoras
(seria o caso de Carpeaux) teria
soberania suficiente para escolher
o que, em sua opinião, merecia
ser publicado em livro.
Há exemplos em que a importância de um Machado de Assis,
ou do próprio Carpeaux, obriga à
permanência no mercado cultural. Qualquer texto de Machado,
seja inédito ou não, merece publicação póstuma. Acredito que
Carpeaux esteja no mesmo caso.
Não dá para destacar um ou
outro trabalho desta coletânea.
Mas Carpeaux tornou-se um autor indispensável ao publicar sua
monumental "História da Literatura Ocidental", em sete volumes,
e sua pequena, mas fundamental
história da música, referência
obrigatória não apenas para iniciantes na matéria, mas para
qualquer especialista isento e
bem informado.
Carpeaux foi um dos poucos
amigos com o qual tive intimidade profunda, profissional e quase
doméstica. Deixamos mais ou
menos ao mesmo tempo o "Correio da Manhã", que não mais
podia agüentar a barra da posição contra o regime militar que
um grupo dentro da redação tomara a partir de abril de 1964.
Desempregados, aconteceu uma
das coisas mais surpreendentes
da minha e da vida do Carpeaux:
éramos convidados para palestras por diretórios de faculdades,
por grupos espalhados em todo o
Brasil, que desejavam ouvir o que
tínhamos a dizer sobre a situação
que atravessávamos.
O problema é que eu era pior do
que o Lula, com grave problema
na fala, o que me obrigava a falar
depressa para que não notassem
o defeito. Metade do que eu falava não era entendida. E a metade
entendida não era suficientemente clara para que ficassem sabendo minha opinião.
Carpeaux era gago, imensamente gago. Apesar disso, durante dois ou três anos, era rara a semana em que não estávamos em
algum canto do território nacional, em reuniões muitas vezes
surpreendentes e equivocadas.
Lembro que, numa cidade do sul
de Minas, ao entrarmos no auditório lotado, vimos na mesa que
nos destinaram, devidamente paramentados, nada mais do que o
bispo local e o coronel comandante do quartel daquela região. A
solução foi falarmos sobre autores
mineiros, Drummond, Guimarães Rosa e... Ary Barroso. Fomos
razoavelmente aplaudidos. Mas,
ao voltarmos ao hotel, a prudência nos obrigou a fazer as malas e
enfrentar a noite na estrada, voltando para o Rio.
Aliás, a gagueira do Carpeaux
era antológica e tinha contraditórias explicações. Uns diziam que
ele ficara gago ao ver atrocidades
nazistas cometidas contra parentes seus. Curiosamente, ele não
era gago em latim, embora o fosse
em alemão e português. Mesmo
assim, quando queria, tinha um
truque (era cheio de truques) para disfarçar. Nas palestras que fazíamos, posso garantir que dificilmente percebiam a sua disfemia.
Mas, na intimidade, solto em si
mesmo e com as pessoas mais
próximas, ele não fazia questão
de esconder o defeito na fala. Já
contei por aí que fomos a Belo
Horizonte para falar sobre dois
filmes de Maurício Gomes Leite,
"Vida Provisória" e um documentário sobre o próprio Carpeaux. Eu ao volante de um Simca Chambord, que teve o privilégio, pouco mais tarde, de ser preso
e autuado com o seu dono no
Dops da rua da Relação, por suspeita de guardar panfletos subversivos e armamentos igualmente subversivos. Tenho a foto, publicada em jornal, do meu Simca
no pátio interno do Dops, isolado
por faixas de advertência, como
se o carro fosse explodir de repente.
Na viagem à capital mineira,
Carpeaux ao meu lado, ele citou
Kierkegaard. Começou a falar
quando saímos de Juiz de Fora,
"Ki...Ki...Ki..." e só completou o
nome do autor dinamarquês em
Barbacena, uns 80 quilômetros
adiante.
Grande, grandíssimo Carpeaux! Na mesma ocasião, numa
palestra em Ouro Preto, enquanto eu gastava dez, 15 minutos para dar uma resposta a qualquer
pergunta que nos faziam, ele dizia tudo em três, quatro palavras,
pronunciadas em ritmo normal.
E o mais importante. Eu praticamente não dizia nada enquanto Carpeaux dizia tudo na economia verbal que lhe era própria
quando enfrentava auditórios.
Lembro que nos perguntaram a
opinião sobre um autor que estava em moda. Falei uns dez minutos sem deixar claro se admirava
ou não o escritor que hoje está, injustamente, creio eu, esquecido.
Carpeaux o detestava, nunca
escrevera nada sobre ele. Mas
provocado, tinha de dizer alguma
coisa. A pergunta era: "Conhece a
obra de fulano?" Carpeaux respondeu com apenas três palavras:
"Pouco. Mas demais".
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