São Paulo, sábado, 03 de fevereiro de 2007

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Wenders marcou geração dos 90, aponta Xavier

Professor vê carcterísticas do cineasta alemão em filmes feitos por Walter Salles, Karim Aïnouz e Marcelo Gomes

Crítico rejeita critério de êxito de público para julgar filmes autorais: "Imagine uma literatura só com Paulos Coelhos..."


DA REPORTAGEM LOCAL

O professor Ismail Xavier descreve a seguir simetrias de "Central do Brasil", "Terra Estrangeira" e "Cinema, Aspirinas e Urubus" com filmes do diretor alemão Wim Wenders e elege "Serras da Desordem", de Andrea Tonacci, como o melhor filme brasileiro recente. Vencedor do 34º Festival de Gramado (2006), o longa de Tonacci está inédito nas salas.

 

FOLHA - Como se deu o "mergulho mais profundo" no diálogo dos cineastas dos 90 com Wim Wenders?
ISMAIL XAVIER -
Este diálogo começa a ser construído com Walter Salles e se aprofunda com Karim Aïnouz, que radicalizou uma dramaturgia dos espaços e dos encontros reticentes. Cada um a seu modo, "Central do Brasil" (1998) e "Terra Estrangeira" (1996) [ambos de Salles], trabalham situações de migração. "Central do Brasil" numa chave que lembra "Alice nas Cidades" [Wenders, 1973] -o encontro do adulto com uma criança que está abandonada, embora num sentido completamente diferente.
Podemos ver a presença de Wenders também em Karim Aïnouz, onde se tem a conexão entre imigração, encontros e desencontros e a pauta de personagens angustiadas, porém capazes de gerar uma saída.
Há ainda a questão da exploração do espaço. É um cinema que quer elaborar a passagem dos personagens, mas sempre com maior ênfase a uma documentação do espaço do que propriamente em desenvolver os conflitos dramáticos.
É um cinema de escoamento do tempo e de contemplação, de interiorização da paisagem.
Em Wenders, essa questão do espaço é fundamental. Não diria que há intenção disso, mas em "Cinema, Aspirinas e Urubus" (Marcelo Gomes, 2005) há simetrias claras com "No Decurso do Tempo" [Wenders, 1976]. Você tem o encontro de duas pessoas; uma delas trabalha com cinema. Há a formação de uma amizade, a construção de uma relação que tem o sentido prático e o do afeto, ao mesmo tempo.

FOLHA - O sr. disse, no Festival de Brasília 2006, que "Serras da Desordem" (Andrea Tonacci) é seu filme brasileiro recente favorito. Por quê?
XAVIER -
"Serras da Desordem" é dotado de uma convivência de temporalidades. Ele tem conexão clara com os trabalhos anteriores de Tonacci, marcados pela vontade de construir uma experiência em que o espectador é convidado a acompanhar o processo e ir montando o jogo, cujas regras só vão ficando claras à medida que o filme avança, como já acontecia com "Bang Bang" (1971). Lá, com carga maior de agressividade.
Com a trajetória de Carapiru [o protagonista do filme é o personagem real Carapiru, índio da aldeia Awá Guajá que foge durante um ataque de jagunços e passa dez anos errante], o filme expressa a vontade de tornar clara a dimensão de violência contida nessa expansão de uma sociedade que pautou sua relação com a natureza por uma idéia de dominar.
Mas, em nenhum momento, Tonacci se coloca na posição de quem realmente conhece Carapiru. O personagem permanece opaco. Não temos a ilusão de ter acesso. Não se sabe o que houve com ele durante os dez anos em que perambulou, e não há da parte de Tonacci nenhuma ansiedade de perguntar.
Não há, ao longo da relação entre Carapiru e o filme "Serras da Desordem", a ilusão de que vamos chegar ao momento em que ele vira uma personagem transparente.
Paradoxalmente, Tonacci monta um jogo em que Carapiru é o [ator Paulo César] Pereio [o personagem à deriva de "Bang Bang"], às avessas -permanece uma pessoa que está representando e não está. É ator e não é.

FOLHA - Mas "Serras da Desordem" caminha para ter distribuição nanica no circuito de salas. É um exemplo de que se aprofunda a distância entre o gosto do público e os filmes que a crítica julga relevantes?
XAVIER -
Falar no cinema no singular é sempre uma simplificação. Há o cinema-poesia, o cinema-ensaio, o cinema-melodrama, as formas da comédia, a reportagem. Faz-se com o cinema o que se faz com a palavra escrita, da comunicação mais cotidiana à ciência, do passatempo à arte que exige uma reflexão mais atenta.
Uma cinematografia precisa de todos esses pólos de produção, como a vida literária. Não se pode julgar Guimarães Rosa ou Clarice Lispector pela quantidade de livros vendidos. O que dizer da poesia? Imagine uma literatura só de Paulos Coelhos ou um cinema só de fórmulas.
O erro está em projetar os critérios de um circuito no outro. Prefiro "Serras da Desordem" e "Filme de Amor" (Julio Bressane) ou "O Céu de Suely" (Karim Aïnouz) ou o cinema de Beto Brant. É a estes filmes que me dedico, pois fazem pensar e me ensinam muita coisa. É por causa disto que vou ao cinema -como formação, enriquecimento de repertório.
Mas há quem prefira sempre "mais do mesmo" ou tome o cinema apenas como negócio, que também é. É outro jogo, do qual estou fora.
Quem questiona o custo social destas experiências, a rigor, está questionando o custo social da educação, da saúde, da segurança, da pesquisa científica, o que é absurdo.


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