São Paulo, sexta-feira, 03 de março de 2006

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CARLOS HEITOR CONY

Gratidão aos ossos de Dana de Teffé

Assunto para os profissionais de comunicação meditarem entre si e também eu próprio comigo mesmo. A totalidade do noticiário e das fofocas das colunas especializadas são dirigidas à política, ao esporte, à economia, à polícia, à cultura, ao entretenimento, à saúde, ao comportamento, à ciência em geral. Eventualmente, eu abordo esses temas, mas sem fanatismo por nenhum deles. Sempre que posso e mesmo quando não posso e não devo, escrevo sobre outros assuntos, desde as bruxarias do "Grande e Verdadeiro Livro de São Cipriano" aos ossos de Dana de Teffé.
Perguntarão pelo lucro que tiro disso tudo. Nenhum. Ou muito, conforme o caso. As bruxarias de São Cipriano provocam e-mails variados, gente querendo saber mais para usar suas bruxarias em casos dolorosos e específicos, por exemplo, como fazer um sujeito sem pernas andar e um viciado em drogas cheirar outro tipo de pó, por exemplo, o polvilho anti-séptico Granado, que é usado para fechar frieiras nos pés.
Escrevo também, e freqüentemente, sobre os ossos de Dana de Teffé, que foi assassinada, teve um assassino praticamente confesso, mas, como era advogado e homem inteligente, invocou a presença do cadáver para o processo. Pelo tempo decorrido entre o crime e o processo, ele exigiu a presença dos ossos da infeliz e houve, durante meses, uma busca desesperada e desvairada pelos tais ossos, que até hoje não se dignaram a aparecer.
Não houve osso de galinha enterrado em qualquer ponto dos 8 milhões de quilômetros quadrados que não fosse esquadrinhado com tratores e escavadeiras. Encontraram até um esqueleto que em vez de dois, tinha três fêmures. De Dana de Teffé, não apareceu sequer uma humilde falangeta do dedo mínimo.
Assunto tão sem importância, despojado de qualquer atualidade e, além do mais, macabro, dificilmente me traria leitores e muito menos amigos. Vã ignorância minha! Um dos mais queridos e adoráveis amigos apareceu justamente por conta desses ossos de Dana de Teffé. Não, ele não tinha nada contra ou favor dos ossos, sequer sabia deles, trata-se de assunto exclusivamente carioca e ele era mineiro dos bons, mineiro de anedota cordial. Chamava-se Carlos Augusto Vieira.
Apareceu no meio de alunos de uma faculdade (ele era professor de outra) e ficou em pé, no fundo do auditório. Quando acabei a minha fala e o moderador abriu espaço e tempo para os debates, no meio de perguntas sobre o Consenso de Washington e sobre a profundidade da prosa de Clarice Lispector, ele levantou a voz e perguntou: "Onde estão os ossos de Dana de Teffé?"
Pasmo na platéia e em mim próprio. O tema anunciado eram os problemas da atualidade nacional e os rumos da literatura brasileira. Os ossos, fossem os do ofício ou de Dana, não estavam na pauta. Não lembro mais o que respondi, mas pedi que o ouvinte me esperasse, queria bater um papinho com ele.
Desse papo nasceu uma amizade que se estendeu à sua família, seu irmão Paulo, sua irmã Teresa Araújo, casada com o Tacão, professor de odontologia, grandíssimo sujeito. E, mais ou menos na mesma ocasião, fiquei amigo de Ricardo, Ângela e Dudu Mohallen, do ex-prefeito de Belo Horizonte, Sílvio Ferrara, do Aloísio Pimenta e de outros. Formaram uma espécie de tropa de choque que desabou no Rio quando tomei posse na Academia Brasileira de Letras.
Carlos Augusto morreu há uns três anos, era estimado por todos, pelos alunos de seu curso, sempre que podia me acompanhava, foi a Tiradentes quando lá tomei parte numa espécie de congresso sobre os 500 anos do descobrimento do Brasil onde, por sinal, pontificou o Peninha, que negava o descobrimento e lançara pela Objetiva uma série de livros sobre o achamento do Brasil.
Só para contrariar o Peninha, tomei partido oposto, o que rendeu bons debates, vencidos todos pelo Eduardo Bueno, que não sei porque descolou uma alcunha (Peninha) que parece apelido de boxeador na categoria de peso pena.
Tudo isso, como posso constatar e agradecer, devo aos ossos de Dana de Teffé. Em 1964, muito escrevi sobre o golpe militar daquele malfadado ano, e o que arranjei de desafetos e até de inimigos não foi mole. Até hoje pago o preço daquelas crônicas. E arrasto a etiqueta de comunista exaltado que, felizmente, é contrabalançada pela etiqueta de anticomunista igualmente exaltado.
Daí que, feitas as contas e tirados os nove fora, descubro que os ossos de Dana de Teffé fizeram dos meus defeitos pessoais e profissionais um grupo de amigos que muito me honram, elevam e consolam.
Carlos Augusto morreu relativamente cedo, fumava desbragadamente, bebia cerveja, comia pouco e engordava muito, trabalhava alucinadamente, era capaz de dar um boi e uma boiada para servir a um amigo. Tenho saudades dele. Quando vou a Belo Horizonte, reuno-me com os meus amigos. Ao Dudu fiz herdeiro dos livros que me entopem as estantes. Em Ricardo, que tanto se preocupa com minha saúde, tenho nele um conselheiro a quem recorro em horas de sufoco.
E devo tudo, repito, aos ossos de Dana de Teffé.


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