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CARLOS HEITOR CONY
Gratidão aos ossos de Dana de Teffé
Assunto para os profissionais de comunicação meditarem entre si e também eu próprio comigo mesmo. A totalidade
do noticiário e das fofocas das colunas especializadas são dirigidas
à política, ao esporte, à economia,
à polícia, à cultura, ao entretenimento, à saúde, ao comportamento, à ciência em geral. Eventualmente, eu abordo esses temas,
mas sem fanatismo por nenhum
deles. Sempre que posso e mesmo
quando não posso e não devo, escrevo sobre outros assuntos, desde
as bruxarias do "Grande e Verdadeiro Livro de São Cipriano" aos
ossos de Dana de Teffé.
Perguntarão pelo lucro que tiro
disso tudo. Nenhum. Ou muito,
conforme o caso. As bruxarias de
São Cipriano provocam e-mails
variados, gente querendo saber
mais para usar suas bruxarias em
casos dolorosos e específicos, por
exemplo, como fazer um sujeito
sem pernas andar e um viciado
em drogas cheirar outro tipo de
pó, por exemplo, o polvilho anti-séptico Granado, que é usado para fechar frieiras nos pés.
Escrevo também, e freqüentemente, sobre os ossos de Dana de
Teffé, que foi assassinada, teve
um assassino praticamente confesso, mas, como era advogado e
homem inteligente, invocou a
presença do cadáver para o processo. Pelo tempo decorrido entre
o crime e o processo, ele exigiu a
presença dos ossos da infeliz e
houve, durante meses, uma busca
desesperada e desvairada pelos
tais ossos, que até hoje não se dignaram a aparecer.
Não houve osso de galinha enterrado em qualquer ponto dos 8
milhões de quilômetros quadrados que não fosse esquadrinhado
com tratores e escavadeiras. Encontraram até um esqueleto que
em vez de dois, tinha três fêmures.
De Dana de Teffé, não apareceu
sequer uma humilde falangeta do
dedo mínimo.
Assunto tão sem importância,
despojado de qualquer atualidade e, além do mais, macabro, dificilmente me traria leitores e muito menos amigos. Vã ignorância
minha! Um dos mais queridos e
adoráveis amigos apareceu justamente por conta desses ossos de
Dana de Teffé. Não, ele não tinha
nada contra ou favor dos ossos,
sequer sabia deles, trata-se de assunto exclusivamente carioca e
ele era mineiro dos bons, mineiro
de anedota cordial. Chamava-se
Carlos Augusto Vieira.
Apareceu no meio de alunos de
uma faculdade (ele era professor
de outra) e ficou em pé, no fundo
do auditório. Quando acabei a
minha fala e o moderador abriu
espaço e tempo para os debates,
no meio de perguntas sobre o
Consenso de Washington e sobre
a profundidade da prosa de Clarice Lispector, ele levantou a voz e
perguntou: "Onde estão os ossos
de Dana de Teffé?"
Pasmo na platéia e em mim
próprio. O tema anunciado eram
os problemas da atualidade nacional e os rumos da literatura
brasileira. Os ossos, fossem os do
ofício ou de Dana, não estavam
na pauta. Não lembro mais o que
respondi, mas pedi que o ouvinte
me esperasse, queria bater um papinho com ele.
Desse papo nasceu uma amizade que se estendeu à sua família,
seu irmão Paulo, sua irmã Teresa
Araújo, casada com o Tacão, professor de odontologia, grandíssimo sujeito. E, mais ou menos na
mesma ocasião, fiquei amigo de
Ricardo, Ângela e Dudu Mohallen, do ex-prefeito de Belo Horizonte, Sílvio Ferrara, do Aloísio
Pimenta e de outros. Formaram
uma espécie de tropa de choque
que desabou no Rio quando tomei posse na Academia Brasileira
de Letras.
Carlos Augusto morreu há uns
três anos, era estimado por todos,
pelos alunos de seu curso, sempre
que podia me acompanhava, foi a
Tiradentes quando lá tomei parte
numa espécie de congresso sobre
os 500 anos do descobrimento do
Brasil onde, por sinal, pontificou
o Peninha, que negava o descobrimento e lançara pela Objetiva
uma série de livros sobre o achamento do Brasil.
Só para contrariar o Peninha,
tomei partido oposto, o que rendeu bons debates, vencidos todos
pelo Eduardo Bueno, que não sei
porque descolou uma alcunha
(Peninha) que parece apelido de
boxeador na categoria de peso pena.
Tudo isso, como posso constatar
e agradecer, devo aos ossos de Dana de Teffé. Em 1964, muito escrevi sobre o golpe militar daquele
malfadado ano, e o que arranjei
de desafetos e até de inimigos não
foi mole. Até hoje pago o preço
daquelas crônicas. E arrasto a etiqueta de comunista exaltado que,
felizmente, é contrabalançada pela etiqueta de anticomunista
igualmente exaltado.
Daí que, feitas as contas e tirados os nove fora, descubro que os
ossos de Dana de Teffé fizeram
dos meus defeitos pessoais e profissionais um grupo de amigos
que muito me honram, elevam e
consolam.
Carlos Augusto morreu relativamente cedo, fumava desbragadamente, bebia cerveja, comia
pouco e engordava muito, trabalhava alucinadamente, era capaz
de dar um boi e uma boiada para
servir a um amigo. Tenho saudades dele. Quando vou a Belo Horizonte, reuno-me com os meus
amigos. Ao Dudu fiz herdeiro dos
livros que me entopem as estantes. Em Ricardo, que tanto se
preocupa com minha saúde, tenho nele um conselheiro a quem
recorro em horas de sufoco.
E devo tudo, repito, aos ossos de
Dana de Teffé.
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