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RODAPÉ
Perversidade polimorfa
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
É fácil dar uma idéia do estranhamento provocado pelos contos de "O Trágico e Outras
Comédias", livro de Veronica
Stigger que será lançado nesta semana. Primeiro parágrafo do
conto "O Mal de Mário Sérgio":
"Mário Sérgio sofria de um mal
desagradável. Toda vez que devia
falar com um estranho, uma parte
de seu corpo crescia exacerbadamente -e não voltava ao normal.
Era só pedir o décimo segundo
andar para a ascensorista que o
dedão do pé direito avançava para
fora da sandália".
Passagem inicial de "No Teatro": "Josefina não gostava de teatro. Nem de circo. Ela gostava de
novelas, de crianças, de bichos, de
banana amassada, de espirrar, de
arrumar o cabelo no salão da esquina, de passear no conversível
de seu namorado rico e feioso, de
cornear seu namorado rico e feioso com o bonitão do jipe velho, de
dar banho no seu cocker spaniel,
de fazer tricô e sexo anal, de ouvir
pagode e confissões das amigas".
Trecho que abre "A Chuva":
"Imagina se um dia começasse a
chover caralhos. Um monte de
caralhos de todos os tamanhos e
formas caindo do céu. Uns maiores, outros menores. Uns fininhos, outros bem grossos, parecendo toras. Caralhos grandes.
Caralhos volumosos. Caralhos roxinhos. Caralhos pequenos, mas
engraçadinhos, daqueles que dá
vontade de chupar feito pirulito".
São contos sobre situações que
violam as leis da natureza, relatos
em que os hábitos mais banais das
personagens -como a Josefina
do trecho citado ou "Maria Aparecida Boca-Suja" (que xinga
quem quer que passe pela frente)- indicam desfechos tragicômicos.
Nas mãos de outro escritor, a
forma abrupta com que essas personagens e suas deformidades são
apresentadas poderia produzir
sensação de repulsa ou gargalhadas de humor negro, dependendo
do estado de espírito do freguês. A
linguagem de Veronica Stigger,
porém, torna tudo familiar, num
nível quase infantil.
A matriz dessa autora gaúcha
são os contos de fadas, com seu léxico elementar e aquela serenidade com que personagens ingênuas são envolvidas nos entrechos mais sinistros e fantásticos.
Todavia, se as histórias infantis
normalizam o elemento assombroso por meio de clichês lingüísticos ("era uma vez") e fornecem
uma conclusão moral para a pulsão repetitiva da criança (que se
deleita ouvindo os mesmos enredos de morte e violação), Stigger
lança mão desse esquema narrativo para produzir curtos-circuitos.
Isso acontece explicitamente no
conto "O Ex-Puto", uma paródia
do modo como as fábulas infantis
são transmitidas de geração em
geração: começa com a descrição
nostálgica de uma cena familiar (a
avó que reúne os netos ao redor
de xícaras de chá e bolos de laranja) e culmina na história de um
tio-avô que se entrega candidamente a prazeres homoeróticos e
delírios masturbatórios:
"Tarcísio era uma pessoa maravilhosa", conta a vovó para os netinhos. "Sempre vestido com terno, gravata borboleta e cartola,
não interessava aonde fosse, estava normalmente de bom humor,
ia a missa todo domingo de manhã, ajudava os amigos e conhecidos (...). Tarcísio não fumava, não
bebia, não jogava. Ele só tinha um
vício: gostava de dar o rabo".
Não há moralismo ou sexismo
no humor de Veronica Stigger. O
desvio da norma social se introduz naturalmente, por força de
sua linguagem sem sobressaltos.
Se ainda assim sentimos que há
algo de estranho ou cômico, é
porque suas personagens estão
numa fase de "perversidade polimorfa", sexualidade pré-genital
em que o corpo é campo irrestrito
de experimentações eróticas.
Os contos de "O Trágico e Outras Comédias" são, assim, metáforas da plasticidade do desejo,
distorcendo sadicamente nossa
realidade (como no conto "Janice
e o Umbigo", em que a protagonista se auto-deglute) e introduzindo um corpo estranho na literatura brasileira.
O Trágico e Outras Comédias
Autora: Veronica Stigger
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 18 (72 págs.)
Lançamento: 5/4, às 19h, no bar
Genésio (r. Fidalga, 259A, SP, tel. 0/xx/
11/3812-6252)
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