São Paulo, sábado, 03 de abril de 2004

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RODAPÉ

Perversidade polimorfa

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

É fácil dar uma idéia do estranhamento provocado pelos contos de "O Trágico e Outras Comédias", livro de Veronica Stigger que será lançado nesta semana. Primeiro parágrafo do conto "O Mal de Mário Sérgio": "Mário Sérgio sofria de um mal desagradável. Toda vez que devia falar com um estranho, uma parte de seu corpo crescia exacerbadamente -e não voltava ao normal. Era só pedir o décimo segundo andar para a ascensorista que o dedão do pé direito avançava para fora da sandália".
Passagem inicial de "No Teatro": "Josefina não gostava de teatro. Nem de circo. Ela gostava de novelas, de crianças, de bichos, de banana amassada, de espirrar, de arrumar o cabelo no salão da esquina, de passear no conversível de seu namorado rico e feioso, de cornear seu namorado rico e feioso com o bonitão do jipe velho, de dar banho no seu cocker spaniel, de fazer tricô e sexo anal, de ouvir pagode e confissões das amigas".
Trecho que abre "A Chuva": "Imagina se um dia começasse a chover caralhos. Um monte de caralhos de todos os tamanhos e formas caindo do céu. Uns maiores, outros menores. Uns fininhos, outros bem grossos, parecendo toras. Caralhos grandes. Caralhos volumosos. Caralhos roxinhos. Caralhos pequenos, mas engraçadinhos, daqueles que dá vontade de chupar feito pirulito".
São contos sobre situações que violam as leis da natureza, relatos em que os hábitos mais banais das personagens -como a Josefina do trecho citado ou "Maria Aparecida Boca-Suja" (que xinga quem quer que passe pela frente)- indicam desfechos tragicômicos.
Nas mãos de outro escritor, a forma abrupta com que essas personagens e suas deformidades são apresentadas poderia produzir sensação de repulsa ou gargalhadas de humor negro, dependendo do estado de espírito do freguês. A linguagem de Veronica Stigger, porém, torna tudo familiar, num nível quase infantil.
A matriz dessa autora gaúcha são os contos de fadas, com seu léxico elementar e aquela serenidade com que personagens ingênuas são envolvidas nos entrechos mais sinistros e fantásticos. Todavia, se as histórias infantis normalizam o elemento assombroso por meio de clichês lingüísticos ("era uma vez") e fornecem uma conclusão moral para a pulsão repetitiva da criança (que se deleita ouvindo os mesmos enredos de morte e violação), Stigger lança mão desse esquema narrativo para produzir curtos-circuitos.
Isso acontece explicitamente no conto "O Ex-Puto", uma paródia do modo como as fábulas infantis são transmitidas de geração em geração: começa com a descrição nostálgica de uma cena familiar (a avó que reúne os netos ao redor de xícaras de chá e bolos de laranja) e culmina na história de um tio-avô que se entrega candidamente a prazeres homoeróticos e delírios masturbatórios:
"Tarcísio era uma pessoa maravilhosa", conta a vovó para os netinhos. "Sempre vestido com terno, gravata borboleta e cartola, não interessava aonde fosse, estava normalmente de bom humor, ia a missa todo domingo de manhã, ajudava os amigos e conhecidos (...). Tarcísio não fumava, não bebia, não jogava. Ele só tinha um vício: gostava de dar o rabo".
Não há moralismo ou sexismo no humor de Veronica Stigger. O desvio da norma social se introduz naturalmente, por força de sua linguagem sem sobressaltos. Se ainda assim sentimos que há algo de estranho ou cômico, é porque suas personagens estão numa fase de "perversidade polimorfa", sexualidade pré-genital em que o corpo é campo irrestrito de experimentações eróticas.
Os contos de "O Trágico e Outras Comédias" são, assim, metáforas da plasticidade do desejo, distorcendo sadicamente nossa realidade (como no conto "Janice e o Umbigo", em que a protagonista se auto-deglute) e introduzindo um corpo estranho na literatura brasileira.


O Trágico e Outras Comédias
   
Autora: Veronica Stigger
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 18 (72 págs.)
Lançamento: 5/4, às 19h, no bar Genésio (r. Fidalga, 259A, SP, tel. 0/xx/ 11/3812-6252)



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