São Paulo, segunda-feira, 03 de abril de 2006

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ANÁLISE

Desfazendo os nós

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A expressão com que os gregos designavam o destino era moira, que significa lote, pedaço. A parte que nos cabe, nossa hora e nossa vez.
No rap "Época de Épicos", Parteum diz que está "marcando época no seu lote de tempo e espaço". Seria uma aceitação da fatalidade?
Não, certamente. Parteum, assim como Mamelo Sound System, Kamau, Paulo Napoli e outros, quebra esse papo de destino como algo que se abate inevitavelmente sobre o homem e o interpreta da mesma maneira como os gregos faziam: como uma condição imanente ao próprio ser em que ele se exprime. É a idéia padronizada do destino colocada de cabeça para baixo, transformada por quem decide pegá-lo na unha e falar sobre ele.
Nada de submissão. Ou se não, o que são frases como: "Eu sigo meu caminho transformando água em vinho/ embebedando sua mente com algo bem diferente de submissão e perda"; "se não gostou, troca de faixa, troca de pista que nem um taxista da avenida Paulista"; "o que me resta é psicografar essa insana fluência que infesta o que eu tenho atrás da testa". E, mais ainda, quando Parteum parodia e aperfeiçoa Erasmo Carlos, dizendo definitivamente: "Ache um rumo pra chamar de seu".
Se a existência e o sucesso do rap já desestruturam nosso instável quebra-cabeças, o que dizer de raps que se autodenominam desconstruídos e de um CD cujo título é "Raciocínio Quebrado"? São músicos nos convidando a desmontar os nós junto deles. Faz-se um chamado para que a classe média intelectualizada abandone a conveniência de localizar o lote dos rappers lá, "no lugar deles", e pense em "diferentes convivendo numa igual atmosfera, sem preconceito", mas sem "dar boi pra mauricinho, intelectual que não gosta de preto, que não fala com pobre, de nariz empinado, que é todo esnobe".
São rappers que invertem a compreensão obtusa e medrosa do destino e propõem uma outra conversa, uma conversão, que, quem sabe, seja uma alternativa mais criativa e poderosa para alguma idéia de harmonia social, quando dizem: "O receio é o começo da destruição do homem/ sem medo não há culpa/ sem culpa não há conflito/ sem conflito não há destruição" ou "comece a escrever de monte, desmonte os conceitos construídos, você vive no Brasil, e não nos Estados Unidos, nosso potencial é igual ao dos gringos, só temos que trocar a bola pelos livros".
Quando Parteum fala de Fellini; quando Rappin Hood enxerta Caetano e Gil em suas canções; quando Mamelo Sound System fala de Miles Davis, estão todos sampleando a assim chamada "alta cultura". Ao dizer que seu lema é travar o sistema e que ele é a engrenagem-problema, Paulo Napoli mostra o seu lado do jogo.
Será que se pode dizer que o inverso é verdadeiro? Ou, como diz Kamau, "será que vende mais porque é bom, ou é bom porque vende mais?". Será que não estamos mesmo loteando a cultura e nos submetendo a uma moira que, essa sim, seria inatingível?
Afinal, como diz Mamelo, "1,2,1,2 - isso aqui não é um teste".


Noemi Jaffe é escritora e professora de literatura, autora de "Folha Explica Macunaíma" (Publifolha) e "Todas as Coisas Pequenas" (ed. Hedra)


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