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ANÁLISE
Desfazendo os nós
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A expressão com que os
gregos designavam o destino
era moira, que significa lote, pedaço. A parte que nos cabe, nossa
hora e nossa vez.
No rap "Época de Épicos", Parteum diz que está "marcando
época no seu lote de tempo e espaço". Seria uma aceitação da fatalidade?
Não, certamente. Parteum, assim como Mamelo Sound
System, Kamau, Paulo Napoli e
outros, quebra esse papo de destino como algo que se abate inevitavelmente sobre o homem e o interpreta da mesma maneira como
os gregos faziam: como uma condição imanente ao próprio ser em
que ele se exprime. É a idéia padronizada do destino colocada de
cabeça para baixo, transformada
por quem decide pegá-lo na unha
e falar sobre ele.
Nada de submissão. Ou se não,
o que são frases como: "Eu sigo
meu caminho transformando
água em vinho/ embebedando
sua mente com algo bem diferente de submissão e perda"; "se não
gostou, troca de faixa, troca de
pista que nem um taxista da avenida Paulista"; "o que me resta é
psicografar essa insana fluência
que infesta o que eu tenho atrás da
testa". E, mais ainda, quando Parteum parodia e aperfeiçoa Erasmo Carlos, dizendo definitivamente: "Ache um rumo pra chamar de seu".
Se a existência e o sucesso do
rap já desestruturam nosso instável quebra-cabeças, o que dizer de
raps que se autodenominam desconstruídos e de um CD cujo título é "Raciocínio Quebrado"? São
músicos nos convidando a desmontar os nós junto deles. Faz-se
um chamado para que a classe
média intelectualizada abandone
a conveniência de localizar o lote
dos rappers lá, "no lugar deles", e
pense em "diferentes convivendo
numa igual atmosfera, sem preconceito", mas sem "dar boi pra
mauricinho, intelectual que não
gosta de preto, que não fala com
pobre, de nariz empinado, que é
todo esnobe".
São rappers que invertem a
compreensão obtusa e medrosa
do destino e propõem uma outra
conversa, uma conversão, que,
quem sabe, seja uma alternativa
mais criativa e poderosa para alguma idéia de harmonia social,
quando dizem: "O receio é o começo da destruição do homem/
sem medo não há culpa/ sem culpa não há conflito/ sem conflito
não há destruição" ou "comece a
escrever de monte, desmonte os
conceitos construídos, você vive
no Brasil, e não nos Estados Unidos, nosso potencial é igual ao dos
gringos, só temos que trocar a bola pelos livros".
Quando Parteum fala de Fellini;
quando Rappin Hood enxerta
Caetano e Gil em suas canções;
quando Mamelo Sound System
fala de Miles Davis, estão todos
sampleando a assim chamada "alta cultura". Ao dizer que seu lema
é travar o sistema e que ele é a engrenagem-problema, Paulo Napoli mostra o seu lado do jogo.
Será que se pode dizer que o inverso é verdadeiro? Ou, como diz
Kamau, "será que vende mais
porque é bom, ou é bom porque
vende mais?". Será que não estamos mesmo loteando a cultura e
nos submetendo a uma moira
que, essa sim, seria inatingível?
Afinal, como diz Mamelo,
"1,2,1,2 - isso aqui não é um teste".
Noemi Jaffe é escritora e professora de
literatura, autora de "Folha Explica Macunaíma" (Publifolha) e "Todas as Coisas
Pequenas" (ed. Hedra)
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