São Paulo, terça-feira, 03 de abril de 2007

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A volta da poncho music

Na era Chávez e Morales, Maria Rita canta com Mercedes Sosa, em show amanhã, no Credicard Hall, e revive os áureos tempos da música de protesto latino-americana

France Presse
A cantora argentina Mercedes Sosa, em show realizado na Guatemala


SYLVIA COLOMBO
THIAGO NEY
DA REPORTAGEM LOCAL

Quando subirem juntas, amanhã, ao palco do Credicard Hall, em São Paulo, a brasileira Maria Rita, 30, e a argentina Mercedes Sosa, 71, estarão relembrando um raro capítulo em comum entre a música popular brasileira e a hispano-americana: o da folclórica, engajada -e hoje totalmente kitsch- canção de protesto.
O momento é mais do que oportuno para Maria Rita. Com a nova onda esquerdista latino-americana reconquistando "corações de estudantes" e defensores de um "outro mundo possível", associar-se a um ícone revolucionário como Sosa é chance de ouro para expandir seu mercado pelo continente.
A cantora acha que essa onda toda é "muito positiva". "Música que faz crítica social sempre tem espaço", disse à Folha. "Hoje há um certo patriotismo, um respeito à cultura nativa, uma tentativa de fazer um impedimento ao imperialismo cultural dos EUA, que é perigoso para a nossa identidade."
A artista acha ainda que governantes como os presidentes Evo Morales (Bolívia) e Hugo Chávez (Venezuela) têm uma "ligação muito forte com o indígena, com o que é nativo", algo que, diz ela, falta ao Brasil.

Canção de protesto
Mas será que a canção de protesto, que tentou desafiar ditaduras e promover a revolução socialista na base da flauta, do poncho, dos tambores e de uma poética de elogio ao homem do povo, ainda dialoga com a realidade do continente?
Para o jornalista Marcelo Tas, que encarnou o repórter Ernesto Varela no fim do regime militar, aos olhos de hoje, todo o cenário da música engajada parece fazer parte de "um programa de humor".
"Quem gostava desse tipo de música nos anos 70/80 era o pessoal de "barba e bolsa", que já formava um estereótipo naquela época. Eles invadiam a aula para convocar assembléia, era engraçado. Por outro lado, não os condeno, pois acho bom as pessoas serem radicais numa fase da vida. Hoje, é claro, parece tudo muito ingênuo."
A própria Mercedes Sosa acha que foi injustamente limitada pelo rótulo do engajamento. "Acho injusto exigir de um artista que cante a mesma coisa a vida toda. Hoje eu me sinto livre para gravar o que quiser, um tango, uma música brasileira. É uma relação mais direta com o público", conclui, dando pistas sobre o repertório que apresentará no show de amanhã.

Movimento estudantil
O militante da Libelu ("Liberdade e Luta", corrente do movimento estudantil nos anos 70) e hoje crítico gastronômico da Folha, Josimar Melo, lembra que havia uma divisão entre quem curtia música de protesto e quem preferia o rock. "Nós, trotskistas, achávamos que a arte deveria ser independente da política. Não éramos contra a música popular, o sambão ou a Mercedes Sosa, só não achávamos que era preciso gostar disso para ser revolucionário. Os stalinistas, o pessoal do PC e do PC do B gostavam de canção de protesto, mas a gente preferia ouvir Led Zeppelin ou Rolling Stones."
O líder do conjunto Raíces de América, o argentino Willy Verdaguer, concorda que a expressão "canção de protesto" tenha ficado datada. "Caiu em desuso, ficou um ranço com relação ao nome. Mas a música em si segue agradando. A diferença é que hoje ela funciona para encorajar e reivindicar outras coisas, como a democracia." Com 27 anos de vida, o Raíces ainda faz shows regularmente. Neles, os hits mais pedidos são as clássicas "Guantanamera" (poema de José Marti) e "La Carta" (Violeta Parra). No dia 27/4, o grupo tocará no Memorial da América Latina.

Muito maior
Líder de uma comunidade no Orkut em homenagem a Mercedes Sosa, o advogado João Marcelo de Andrade, 28, diz que "embora não haja mais um regime ditatorial para combater, as pessoas de anseios esquerdistas se vêem retratadas pelas músicas de Sosa".
Essa identificação do trabalho da cantora com a causa socialista ainda incomoda o amigo e parceiro Raimundo Fagner. "As gravadoras erraram ao querer enquadrá-la nesse rótulo. Ela é uma artista muito maior." O cantor diz que, nos anos 80, quando fez parcerias com ela, Rafael Alberti e Paco de Lucia, concordava politicamente com a causa, "mas o que me interessava mesmo era a música. Esse discurso político que tomou conta dela esgotou-a do ponto de vista estético".
Para Fagner, aquele momento foi interessante porque houve um intercâmbio entre a música brasileira e a latino-americana. Mas só por isso. "A música brasileira de protesto sempre foi muito superior artisticamente do que a desses outros países. É por isso que a brasileira resistiu e a latino-americana parece hoje uma caricatura."


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