São Paulo, sexta-feira, 03 de maio de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

A vida continuará cor-de-rosa em Paris

Naquela segunda-feira, dia de fechamento da revista, mal entrei na redação, encontrei o Justino Martins radiante e, ao mesmo tempo, preocupado. Chamou-me para um canto e desabafou:
- Viu o resultado das eleições na França? Mitterrand ganhou. Finalmente a esquerda chegou ao poder.
- E eu com isso? - respondi. Não havia tomado conhecimento de que houvera eleições na França e muito menos de que François Mitterrand havia vencido.
Sim, eu teria alguma coisa a ver com aquilo. Justino queria dar capa com Mitterrand e, para isso, precisaria de um texto exclusivo, que não fosse o das agências internacionais. E, segundo ele, somente eu poderia comentar o assunto, pois teria a liberdade de entrar numa seara que não fazia o gênero da revista.
Não era a primeira vez que isso acontecia. O dono da empresa tinha uma curiosa maneira de encarar as coisas. Certa vez, o Flávio de Aquino, já doente, fazendo hemodiálise semanal, mas indo trabalhar todos os dias, perdeu a paciência, falava com alguém ao telefone, irritou-se, jogou o aparelho no chão e começou a chutá-lo.
O barulho foi geral, pois o telefone quebrou uma das divisões de vidro da redação. O dono veio ver o que estava havendo, verificou o estrago e perguntou quem havia feito aquilo. Um dedo-duro de plantão entregou: "Foi o Flávio de Aquino!".
O dono abaixou a cabeça e disse: "Ele pode". E mandou consertar a divisória de vidro.
Tendo em vista a discriminação existente naquela empresa, o Justino achava que somente eu poderia comentar a vitória da esquerda na França. Ele precisava da capa, a capa precisava da matéria e eu teria de desovar, no espaço de uma manhã (perdão, nada a ver com as rosas de Malherbe!) cinco ou seis laudas, espaço dois, saudando a esquerda que chegava ao poder na França, a França da Comuna de Paris, da Queda da Bastilha, do Código Civil, da Marselhesa, da revolta estudantil de 1968.
Na minha mesa, já haviam colocado as empoeiradas pastas do Departamento de Pesquisa, um mundão delas; eu precisaria gastar cinco anos de minha vida para examiná-las criteriosamente. Daí que pedi ao contínuo para desimpedir a mesa, devolvendo as pastas à Pesquisa e limpando a poeira do passado.
Um título me ocorreu: "Paris - La Vie en Rouge". Justino vibrou, escolheu a capa e deu uma chamada deste tamanho, anunciando a vida em vermelho na França, na França de Danton, Marat e Robespierre.
Não lembro as bobagens que então escrevi, tantas e tamanhas que fica impossível recordar tudo o que disse e, sobretudo, insinuei. Acontece que Mitterrand governou durante sete anos, foi reeleito para mais sete anos, e a única verdade que eu despejei naquela matéria foi o famoso lugar-comum segundo o qual os franceses têm o coração na esquerda e o bolso na direita.
Corte brusco para a chegada de Le Pen ao segundo turno nas eleições francesas de 2002. Seria o caso de mudar o meu título? Edith Piaff achava a vida cor-de-rosa quando o amante a prendia em seus braços. Mitterrand deu a impressão de que a vida seria vermelha sob o regime socialista que ele prometia. Para manter a analogia, eu precisaria saber qual a cor da direita para alterar o título. A vida negra -cor do fascismo na Itália? A vida em verde -cor do integralismo no Brasil? A vida em branco, em azul, em amarelo.
Felizmente, aqui na Folha, ninguém me pediu para escrever sobre o assunto. Alcino Leite, lá de Paris, tem mandado excelentes matérias, sem chutes nem metáforas -que eu cultivo com obstinada predileção.
Mas vamos ao que interessa: dificilmente a direita radical, personalizada em Le Pen, vencerá no segundo turno. Chirac será reeleito, até com boa margem de votos. Direitista moderado, na linha de um degaulismo recauchutado, ele deverá manter as coisas mais ou menos como estão, e não estão tão desastrosas assim.
Contudo o resultado do primeiro turno deu um baita susto nos quintais da esquerda internacional. Bush nos Estados Unidos, Berlusconi na Itália, Le Pen na França... onde vamos parar? Nos anos 50 do século passado, havia a convicção de que o vento da história soprava para a esquerda. Tive amigos que começaram a aprender russo e chinês, pois acreditavam que em breve o mundo todo só falaria os dois idiomas do socialismo explícito.
A esquerda tornou-se não um tigre de papel, mas um tigre de verdade, à espreita de devorar os valores tradicionais daquilo que chamavam "mundo livre". As esteiras dos tanques soviéticos rolando pelas ruas de Budapeste e Praga faziam tremer os pilares do conservadorismo. Um coronel da PE de Mato Grosso acusou, em ordem do dia, a presença de um tanque suspeito que rolava suas esteiras nas ruas de Cuiabá.
A direita vivia afobada por causa de ameaças assim. Não houve a vida em vermelho na França. Ainda se pode ouvir a canção de Edith Piaf, desde que não seja entoada pelo Cauby Peixoto.



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