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CARLOS HEITOR CONY
A vida continuará cor-de-rosa em Paris
Naquela segunda-feira, dia de fechamento da revista, mal entrei na redação, encontrei o Justino Martins radiante e, ao mesmo tempo, preocupado.
Chamou-me para um canto e desabafou:
- Viu o resultado das eleições na França? Mitterrand ganhou.
Finalmente a esquerda chegou ao poder.
- E eu com isso? - respondi.
Não havia tomado conhecimento
de que houvera eleições na França e muito menos de que François
Mitterrand havia vencido.
Sim, eu teria alguma coisa a ver
com aquilo. Justino queria dar
capa com Mitterrand e, para isso,
precisaria de um texto exclusivo,
que não fosse o das agências internacionais. E, segundo ele, somente eu poderia comentar o assunto, pois teria a liberdade de
entrar numa seara que não fazia
o gênero da revista.
Não era a primeira vez que isso
acontecia. O dono da empresa tinha uma curiosa maneira de encarar as coisas. Certa vez, o Flávio
de Aquino, já doente, fazendo hemodiálise semanal, mas indo trabalhar todos os dias, perdeu a paciência, falava com alguém ao telefone, irritou-se, jogou o aparelho no chão e começou a chutá-lo.
O barulho foi geral, pois o telefone quebrou uma das divisões de
vidro da redação. O dono veio ver
o que estava havendo, verificou o
estrago e perguntou quem havia
feito aquilo. Um dedo-duro de
plantão entregou: "Foi o Flávio
de Aquino!".
O dono abaixou a cabeça e disse: "Ele pode". E mandou consertar a divisória de vidro.
Tendo em vista a discriminação
existente naquela empresa, o Justino achava que somente eu poderia comentar a vitória da esquerda na França. Ele precisava
da capa, a capa precisava da matéria e eu teria de desovar, no espaço de uma manhã (perdão, nada a ver com as rosas de Malherbe!) cinco ou seis laudas, espaço
dois, saudando a esquerda que
chegava ao poder na França, a
França da Comuna de Paris, da
Queda da Bastilha, do Código Civil, da Marselhesa, da revolta estudantil de 1968.
Na minha mesa, já haviam colocado as empoeiradas pastas do
Departamento de Pesquisa, um
mundão delas; eu precisaria gastar cinco anos de minha vida para examiná-las criteriosamente.
Daí que pedi ao contínuo para
desimpedir a mesa, devolvendo as
pastas à Pesquisa e limpando a
poeira do passado.
Um título me ocorreu: "Paris -
La Vie en Rouge". Justino vibrou,
escolheu a capa e deu uma chamada deste tamanho, anunciando a vida em vermelho na França, na França de Danton, Marat e
Robespierre.
Não lembro as bobagens que
então escrevi, tantas e tamanhas
que fica impossível recordar tudo
o que disse e, sobretudo, insinuei.
Acontece que Mitterrand governou durante sete anos, foi reeleito
para mais sete anos, e a única verdade que eu despejei naquela matéria foi o famoso lugar-comum
segundo o qual os franceses têm o
coração na esquerda e o bolso na
direita.
Corte brusco para a chegada de
Le Pen ao segundo turno nas eleições francesas de 2002. Seria o caso de mudar o meu título? Edith
Piaff achava a vida cor-de-rosa
quando o amante a prendia em
seus braços. Mitterrand deu a impressão de que a vida seria vermelha sob o regime socialista que
ele prometia. Para manter a analogia, eu precisaria saber qual a
cor da direita para alterar o título. A vida negra -cor do fascismo na Itália? A vida em verde
-cor do integralismo no Brasil?
A vida em branco, em azul, em
amarelo.
Felizmente, aqui na Folha, ninguém me pediu para escrever sobre o assunto. Alcino Leite, lá de
Paris, tem mandado excelentes
matérias, sem chutes nem metáforas -que eu cultivo com obstinada predileção.
Mas vamos ao que interessa: dificilmente a direita radical, personalizada em Le Pen, vencerá no
segundo turno. Chirac será reeleito, até com boa margem de votos.
Direitista moderado, na linha de
um degaulismo recauchutado, ele
deverá manter as coisas mais ou
menos como estão, e não estão
tão desastrosas assim.
Contudo o resultado do primeiro turno deu um baita susto nos
quintais da esquerda internacional. Bush nos Estados Unidos,
Berlusconi na Itália, Le Pen na
França... onde vamos parar? Nos
anos 50 do século passado, havia
a convicção de que o vento da história soprava para a esquerda.
Tive amigos que começaram a
aprender russo e chinês, pois acreditavam que em breve o mundo
todo só falaria os dois idiomas do
socialismo explícito.
A esquerda tornou-se não um
tigre de papel, mas um tigre de
verdade, à espreita de devorar os
valores tradicionais daquilo que
chamavam "mundo livre". As esteiras dos tanques soviéticos rolando pelas ruas de Budapeste e
Praga faziam tremer os pilares do
conservadorismo. Um coronel da
PE de Mato Grosso acusou, em
ordem do dia, a presença de um
tanque suspeito que rolava suas
esteiras nas ruas de Cuiabá.
A direita vivia afobada por causa de ameaças assim. Não houve
a vida em vermelho na França.
Ainda se pode ouvir a canção de
Edith Piaf, desde que não seja entoada pelo Cauby Peixoto.
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