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MARCELO COELHO
Auto-ajuda em negativo
Livro terrível, em mais de
um sentido, é esse "O Ano do
Pensamento Mágico", da escritora americana Joan Didion, que
acaba de ser lançado pela editora
Nova Fronteira. É um relato autobiográfico que já vendeu mais
de 500 mil exemplares nos Estados Unidos.
Muitas de suas frases e cogitações parecem vir de uma criança
de sete anos. Eis como a autora
descreve o casamento de sua filha
adotiva, chamada Quintana.
"Ela estava de véu, com um longo vestido branco, e uns sapatos
chiques, de grife. O cabelo estava
arrumado numa trança grossa
que descia pelas costas, como
quando ela era menina."
Novo parágrafo. "Sentamos
perto do altar, na igreja Saint
John the Divine. O pai a conduziu
até lá, onde estavam Susan, a melhor amiga dela da Califórnia
desde os três anos de idade, a melhor amiga dela em Nova York, e
a prima dela, Hannah. Havia
também a prima Kelley, da Califórnia, que leu algumas partes da
cerimônia (...) Havia sanduíches
de maionese de agrião, champanhe, limonada, guardanapos rosa-pêssego combinando com a cor
do sorvete que acompanhava o
bolo e pavões no jardim."
O livro inteiro padece dessa
simploriedade sintática, muitas
vezes destacando em parágrafos
isolados algumas frases curtas,
supostamente de impacto. "Eles
desceram do avião." Parágrafo.
"Pegaram a sacola." Parágrafo.
"Gerry estava carregando a sacola" etc. etc. Some-se a isso o hábito
da autora de repetir as mesmas
frases ao longo dos vários capítulos do livro; não passam, muitas
vezes, de citações extremamente
fragmentadas e opacas -ou então de impenetráveis trechos de
relatórios médicos.
Mas com isso entramos no outro sentido do termo "terrível", e
naquilo que faz "O Ano do Pensamento Mágico" um texto importante de ler, ainda que bastante
sumário enquanto literatura.
Joan Didion começa narrando
o que aconteceu na noite de 30 de
dezembro de 2003. A filha Quintana estava internada numa UTI,
com infecção generalizada: o que
inicialmente tinha sido apenas
uma gripe evoluíra para uma
pneumonia, e dali a dois ou três
dias suas chances de sobrevivência estariam sendo calculadas em
torno de 60%.
Naquela noite, Joan Didion e
seu marido, John, entram em casa
depois de visitar Quintana na
UTI. Ela acende a lareira, ele toma um uísque, os dois se sentam
para jantar. John se cala de repente: morreu de um ataque cardíaco.
Com simplicidade característica, Joan Didion escreve no primeiro capítulo: "A vida se transforma rapidamente. A vida muda
num instante. Você se senta para
jantar, e aquela vida que você conhecia acaba de repente". Começava, para a autora, "o ano do
pensamento mágico".
Ela é assaltada por toda sorte de
tabus, superstições e raciocínios
absurdos a partir da morte do
marido. A mensagem da secretária eletrônica fora gravada por
John. O que fazer? Mudar a mensagem não seria uma espécie de
traição? Ela não tem dificuldades
em se desfazer das roupas do marido. Mas, quando chega a hora
de separar os sapatos, interrompe-se.
"Eu não podia doar o resto dos
sapatos dele. Fiquei ali parada
por um momento, e depois compreendi por quê: se ele fosse voltar, precisaria dos sapatos." Muita coisa se concentra, creio, nesse
tipo de experiência, que dá ao livro grande força e interesse. É como se, diante do absurdo de uma
morte inesperada -de toda morte, afinal-, uma espécie de "excedente de sentido", de "sobra de
significado" ficasse vagando em
torno de nós, depositando-se então nos detalhes mais tolos, nas
circunstâncias mais comezinhas
da realidade.
O insignificante e o absurdo
dão-se as mãos e substituem a impotência de quem sofre pela sensação, muitas vezes culpada, de
que a mais ínfima ação pode alterar totalmente as coisas.
Se as frases de Joan Didion parecem banais e esquemáticas, é
porque, na verdade, são os destroços mínimos de uma realidade a
que ela tenta se agarrar. Suas dificuldades são ainda maiores,
aliás, pelo que se pode intuir no livro a respeito de algumas particularidades da cultura americana.
O marido cai no chão, Didion
chama a ambulância, vai ao hospital e está o tempo todo sem parentes, sem amigos. Constatada a
morte de John, ela é apresentada
a um assistente social, que, na sua
frente, diz ao médico: "Tudo bem.
Ela é uma cliente bastante equilibrada".
Depois disso, deixando o marido morto no hospital, ela pega um
táxi e volta para casa! Depois de
alguns telefonemas, uma amiga
aparece -que na hora trata de ligar para Christopher. A saber, o
encarregado de notícias fúnebres
do "The New York Times".
Tudo parece estranho para a
autora, mas sem dúvida é mais
estranho para nós: uma extrema
objetividade, uma quase fobia de
toda comoção sentimental, parece ainda mais forte nos Estados
Unidos do que no Brasil -onde
esse fenômeno, típico da "ideologia da felicidade" que toma conta
do mundo contemporâneo, também se faz notar.
Sobretudo, o que importa é extinguir a autopiedade, que para a
autora "é o defeito de personalidade mais comum e o mais abominado de todos". Não sei se temos, no Brasil, essa mesma avaliação. Pragmatismo norte-americano? Ou ainda a "ideologia da
felicidade"?
Seja como for, o livro parece ser
ao mesmo tempo um resultado e
uma rejeição desse fenômeno. Arrisco outra explicação para suas
frases curtas, repetições e banalidades: "O Ano do Pensamento
Mágico" tem a estrutura de um livro de auto-ajuda. Mas é a auto-ajuda em negativo, tragicamente
impregnado da idéia de que, às
vezes, ninguém pode ajudar.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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