São Paulo, quarta-feira, 03 de maio de 2006

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MARCELO COELHO

Auto-ajuda em negativo

Livro terrível, em mais de um sentido, é esse "O Ano do Pensamento Mágico", da escritora americana Joan Didion, que acaba de ser lançado pela editora Nova Fronteira. É um relato autobiográfico que já vendeu mais de 500 mil exemplares nos Estados Unidos.
Muitas de suas frases e cogitações parecem vir de uma criança de sete anos. Eis como a autora descreve o casamento de sua filha adotiva, chamada Quintana.
"Ela estava de véu, com um longo vestido branco, e uns sapatos chiques, de grife. O cabelo estava arrumado numa trança grossa que descia pelas costas, como quando ela era menina."
Novo parágrafo. "Sentamos perto do altar, na igreja Saint John the Divine. O pai a conduziu até lá, onde estavam Susan, a melhor amiga dela da Califórnia desde os três anos de idade, a melhor amiga dela em Nova York, e a prima dela, Hannah. Havia também a prima Kelley, da Califórnia, que leu algumas partes da cerimônia (...) Havia sanduíches de maionese de agrião, champanhe, limonada, guardanapos rosa-pêssego combinando com a cor do sorvete que acompanhava o bolo e pavões no jardim."
O livro inteiro padece dessa simploriedade sintática, muitas vezes destacando em parágrafos isolados algumas frases curtas, supostamente de impacto. "Eles desceram do avião." Parágrafo. "Pegaram a sacola." Parágrafo. "Gerry estava carregando a sacola" etc. etc. Some-se a isso o hábito da autora de repetir as mesmas frases ao longo dos vários capítulos do livro; não passam, muitas vezes, de citações extremamente fragmentadas e opacas -ou então de impenetráveis trechos de relatórios médicos.
Mas com isso entramos no outro sentido do termo "terrível", e naquilo que faz "O Ano do Pensamento Mágico" um texto importante de ler, ainda que bastante sumário enquanto literatura.
Joan Didion começa narrando o que aconteceu na noite de 30 de dezembro de 2003. A filha Quintana estava internada numa UTI, com infecção generalizada: o que inicialmente tinha sido apenas uma gripe evoluíra para uma pneumonia, e dali a dois ou três dias suas chances de sobrevivência estariam sendo calculadas em torno de 60%.
Naquela noite, Joan Didion e seu marido, John, entram em casa depois de visitar Quintana na UTI. Ela acende a lareira, ele toma um uísque, os dois se sentam para jantar. John se cala de repente: morreu de um ataque cardíaco.
Com simplicidade característica, Joan Didion escreve no primeiro capítulo: "A vida se transforma rapidamente. A vida muda num instante. Você se senta para jantar, e aquela vida que você conhecia acaba de repente". Começava, para a autora, "o ano do pensamento mágico".
Ela é assaltada por toda sorte de tabus, superstições e raciocínios absurdos a partir da morte do marido. A mensagem da secretária eletrônica fora gravada por John. O que fazer? Mudar a mensagem não seria uma espécie de traição? Ela não tem dificuldades em se desfazer das roupas do marido. Mas, quando chega a hora de separar os sapatos, interrompe-se.
"Eu não podia doar o resto dos sapatos dele. Fiquei ali parada por um momento, e depois compreendi por quê: se ele fosse voltar, precisaria dos sapatos." Muita coisa se concentra, creio, nesse tipo de experiência, que dá ao livro grande força e interesse. É como se, diante do absurdo de uma morte inesperada -de toda morte, afinal-, uma espécie de "excedente de sentido", de "sobra de significado" ficasse vagando em torno de nós, depositando-se então nos detalhes mais tolos, nas circunstâncias mais comezinhas da realidade.
O insignificante e o absurdo dão-se as mãos e substituem a impotência de quem sofre pela sensação, muitas vezes culpada, de que a mais ínfima ação pode alterar totalmente as coisas.
Se as frases de Joan Didion parecem banais e esquemáticas, é porque, na verdade, são os destroços mínimos de uma realidade a que ela tenta se agarrar. Suas dificuldades são ainda maiores, aliás, pelo que se pode intuir no livro a respeito de algumas particularidades da cultura americana.
O marido cai no chão, Didion chama a ambulância, vai ao hospital e está o tempo todo sem parentes, sem amigos. Constatada a morte de John, ela é apresentada a um assistente social, que, na sua frente, diz ao médico: "Tudo bem. Ela é uma cliente bastante equilibrada".
Depois disso, deixando o marido morto no hospital, ela pega um táxi e volta para casa! Depois de alguns telefonemas, uma amiga aparece -que na hora trata de ligar para Christopher. A saber, o encarregado de notícias fúnebres do "The New York Times".
Tudo parece estranho para a autora, mas sem dúvida é mais estranho para nós: uma extrema objetividade, uma quase fobia de toda comoção sentimental, parece ainda mais forte nos Estados Unidos do que no Brasil -onde esse fenômeno, típico da "ideologia da felicidade" que toma conta do mundo contemporâneo, também se faz notar.
Sobretudo, o que importa é extinguir a autopiedade, que para a autora "é o defeito de personalidade mais comum e o mais abominado de todos". Não sei se temos, no Brasil, essa mesma avaliação. Pragmatismo norte-americano? Ou ainda a "ideologia da felicidade"?
Seja como for, o livro parece ser ao mesmo tempo um resultado e uma rejeição desse fenômeno. Arrisco outra explicação para suas frases curtas, repetições e banalidades: "O Ano do Pensamento Mágico" tem a estrutura de um livro de auto-ajuda. Mas é a auto-ajuda em negativo, tragicamente impregnado da idéia de que, às vezes, ninguém pode ajudar.


@ - coelhofsp@uol.com.br


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