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CONTARDO CALLIGARIS
"O Sol se Põe em São Paulo"
O barulho de fundo da metrópole americana é o burburinho de mil histórias engasgadas
O ÚLTIMO romance de Bernardo Carvalho, "O Sol se Põe
em São Paulo" (Companhia
das Letras), começa com a fotografia
de Antônio Gaudério que se estende
por capa e contracapa: é uma visão
de São Paulo coberta por uma nuvem que, ao mesmo tempo, oprime e
engrandece a cidade (como se sua
existência fosse um desafio).
Logo, acontece o seguinte: num
restaurante do bairro da Liberdade,
a senhora japonesa que está no caixa
pede a um cliente (o narrador) que
ele escute e escreva a história de sua
vida no Japão. A maior parte dos fatos narrados acontece, portanto, no
Império do Sol Levante, uma parcela do qual veio se pôr em São Paulo.
Os romances de Bernardo Carvalho ("Nove Noites", "Mongólia") são
janelas sobre universos distantes.
Ler é um pouco como alistar-se na
marinha: a gente viaja e vê o mundo.
Desta vez, não é diferente: o leitor
descobre um Japão sutil, contraditório e inesperado. No entanto, para
mim, o tema do livro não é o Japão, é
São Paulo ou qualquer metrópole
das Américas, do Norte ou do Sul.
Raramente, aliás, um romance me
pareceu captar de maneira tão comovedora a essência da metrópole
americana.
Nos primeiros dias depois da leitura, jantando com amigos nos restaurantes de sushi da Liberdade,
tornei-me um péssimo comensal.
Os amigos conversavam, e eu não
prestava atenção, ficava olhando
(discretamente) para a mulher atrás
do caixa do restaurante. Era japonesa? Nissei, sansei? Onde (nela, nos
pais ou nos avós?) e como teria
acontecido ou estaria acontecendo o
choque da imigração? De qual história de seu passado ou dos ascendentes ela seria a depositária silenciosa?
Amo as metrópoles americanas
(do Norte ou do Sul, dá na mesma)
por elas serem os bancos de areia
onde jazem, respirando a duras penas, os sonhos de milhões de homens e mulheres, como baleias encalhadas.
Não esqueço meus passeios, em
tardes de verão dos anos 60, pelas
ruas do Queens, do Brooklyn ou do
Bronx: sentados em cadeiras de
plástico ou nos degraus que levam à
porta dos edifícios, com uma cerveja
gelada ou um sorvete na mão, lá estavam os representantes ou os restos de fantasias de uma vida melhor,
mais livre, mais rica e mais feliz. Da
Ásia, da África, da América Central
ou do Sul, da Europa, seus pais, avós,
bisavós ou seus ascendentes longínquos tinham fugido a miséria, a
opressão, a perseguição ou simplesmente o tédio e seguido um sonho
de glória, paz, liberdade, bem-estar e
riqueza. Para outros, descendentes
de escravos, no lugar do sonho, devia
estar o pesadelo do rapto, do cativério e do transporte forçado (com a
obrigação de inventar novos sonhos,
de zero).
Essas fantasias (frustradas ou realizadas) assim como os pesadelos de
quem foi trazido à força são, antes de
mais nada, histórias que raramente
são contadas. Talvez esta seja uma
condição necessária da América, um
preço implicitamente cobrado na
entrada: um esquecimento da vida
antes da viagem, do trajeto, da ruptura e também dos sonhos (bons ou
ruins, conscientes e inconscientes)
que decidiram ou acompanharam a
viagem.
O barulho de fundo da metrópole
americana, aquele murmúrio indefinível que você escuta sempre,
quando abre a janela, mesmo de madrugada, não é o dos carros que ainda circulam, da atividade da cidade
"que nunca dorme"; talvez seja o
burburinho de milhões de histórias
engasgadas, que tentam se dizer e
não conseguem.
Em suma, o sol levante de Setsuko, a protagonista de Bernardo Carvalho, não é o único que se põe em
São Paulo e nas outras metrópoles
americanas.
Há uma estranha proximidade
entre o trabalho do terapeuta e o do
escritor (talvez fosse melhor dizer
escriba), que tem a incumbência de
escutar, talvez decriptar (ou, por que
não, inventar) as histórias que os outros são impedidos de contar.
Um dia, ainda escreverei um ensaio intitulado "O Terapeuta Americano" - imitando o empreendimento de Ralph Waldo Emerson
quando escreveu "The American
Scholar" para mostrar a especificidade da condição do intelectual
americano (nos "Ensaios", Martin
Claret).
A idéia central será, sem dúvida,
que, nas Américas, não há acesso
verdadeiro à subjetividade sem
abrir as malas de quem veio, ou seja,
sem reconstruir a vida pregressa e a
história dos sonhos, da tragédia ou
da agonia da emigração (a do sujeito
ou a de seus ascendentes que emigraram).
ccalligari@uol.com.br
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