São Paulo, sábado, 03 de maio de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Alegoria da caverna


Boudjedra escreve na língua do colonizador e tem na condição do estrangeiro um motivo central de sua obra

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"CRÔNICA DA morte anunciada de um imigrante perdido nos subterrâneos de Paris, escrita por um autor argelino contra o qual foi lançado um "fatwa" (sentença de morte por ofensa à lei islâmica). A trama de "Topografia Ideal para uma Agressão Caracterizada" e as circunstâncias biográficas de seu autor, Rachid Boudjedra, induzem a colocar esse romance de 1975 sob a rubrica da literatura pós-colonialista.
Em parte, é um julgamento correto. Tal como Tahar Ben Jelloun, marroquino de expressão francesa, Boudjedra escreve na língua do colonizador e tem na condição do estrangeiro um motivo central de sua obra. Correto, porém parcial. O fato de ter sofrido um "fatwa" mostra o quanto Boudjedra tem visão crítica das instituições muçulmanas (vale lembrar que a onda recente de terrorismo fundamentalista começou na Argélia, com a Frente Islâmica de Salvação).
E, no plano estético, "Topografia Ideal para uma Agressão Caracterizada" demonstra que o escritor parte de um dado objetivo -a situação dos imigrantes magrebinos na metrópole européia- para moldar sua matéria-prima com a intenção de fazer arte (e não política). Se podemos ver compromisso social nesse romance fortemente influenciado pelo "nouveau roman" -com seus fluxos verbais e noções de tempo-espaço que expõem o caráter de artefato da escrita ficcional-, a função ética se realiza pela criação de uma forma romanesca a serviço apenas da autonomia de seu ponto de vista.
Melhor dizendo, "Topografia Ideal..." persegue aquela definição do mexicano Carlos Fuentes segundo a qual "a imaginação é o nome do conhecimento na literatura e na arte". Todo conhecimento, porém, tem um objeto e, no caso, Boudjedra trata justamente do modo como o homem pode ser tornar mais um utensílio do mundo.
Escrito numa cadência que abole a pontuação convencional, com interpolação de longos períodos digressivos, o romance tem por protagonista um argelino analfabeto, perdido pelas linhas do metrô parisiense. Ele carrega apenas uma maleta e um pedaço de papel com um itinerário que não pode decifrar: está à mercê da ajuda dos outros -e do julgamento dos outros.
O narrador, cujo ponto de vista é móvel, se coloca ora na perspectiva de um investigador que tenta elucidar o assassinato dessa personagem por uma horda xenófoba, ora na mente atônita do estrangeiro que não compreende os códigos da sociedade ultratecnológica e se relaciona com imagens publicitárias como se fossem pessoas.
Confinando a narrativa ao movimento falso pelo subsolo da cidade-luz, Boudjedra recria a alegoria da caverna (Platão) e faz de cada habitante da "casbá européia" um estrangeiro entre estrangeiros.


TOPOGRAFIA IDEAL PARA UMA AGRESSÃO CARACTERIZADA
Autor: Rachid Boudjedra
Tradução: Flávia Nascimento
Editora: Estação Liberdade
Quando: R$ 36 (232 págs.)
Avaliação: bom



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