São Paulo, sábado, 03 de maio de 2008

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ANTONIO CICERO

O sentido da vanguarda


Não pode haver caminho a ser indicado ou aberto por alguns poucos, para ser seguido por muitos

NINGUÉM IGNORA o sentido metafórico da palavra "avant-garde", de onde vem a nossa "vanguarda". No âmbito militar em que se origina, ela designa o dispositivo avançado de um exército ou de uma frota, isto é, o destacamento que, indo à frente, indica ou abre caminho para o grosso do Exército ou da frota. Analogamente, chamam-se de "vanguarda" os artistas que, estando à frente dos demais, indicam ou abrem os caminhos que serão eventualmente tomados por estes.
Historicamente, a vanguarda não só se atribuiu o papel de indicar ou abrir caminhos, mas efetivamente o cumpriu. Por exemplo, antes da eclosão das vanguardas, as formas poéticas mais tradicionais em uso nas línguas modernas haviam sido fetichizadas. Supunha-se que o uso de métrica ou de rima ou o emprego de alguma das diversas formas fixas então catalogadas (tais quais o soneto, a balada e a sextina) fosse necessário para a produção de um bom poema. Desse modo, consideravam-se naturais determinadas formas convencionais.
Pois bem: ao produzir autênticos poemas sem o emprego dessas formas, as vanguardas mostraram, em primeiro lugar, o caráter convencional de tais formas; em segundo lugar, mostraram que a poesia ou o poético não se encontram prêt-à-porter, à disposição do poeta, nestas ou naquelas formas fixas; em terceiro lugar, mostraram que a poesia não é necessariamente incompatível com nenhuma forma determinada: que é possível inventar novas formas para ela.
Assim, ao desfetichizar as formas poéticas tradicionais, as vanguardas abriram novas possibilidades para todos os poetas. E ressalto que, apesar da retórica da "morte", da "destruição", do "fim" das formas poéticas que a vanguarda mostrou serem relativas, a verdade é que nenhuma das formas convencionais jamais deixou de existir ou de continuar a ser realizada, em maior ou menor grau. As formas existentes podem ser relativizadas, mas não morrem.
No meu artigo anterior, observei que, no seu "Plano-Piloto", a poesia concreta errara ao dar por encerrado o ciclo do verso. Por outro lado, o "Plano-Piloto" também afirmava que "a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural. Espaço qualificado: estrutura espaço-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear".
Pois bem, ao efetivamente criar poemas de estrutura não-discursiva, espaço-temporal, a poesia concreta eliminou a possibilidade de qualquer fetichismo residual em relação a qualquer forma convencional da poesia. Trata-se, sem dúvida, de um feito eminentemente vanguardista, pois todos os poetas são afetados tanto pelas possibilidades que ele abre quanto pela conseqüente relativização de todas as formas tradicionais de poesia.
Entretanto, é preciso reconhecer que esse foi o derradeiro feito da vanguarda no campo da poesia. Com isso, não quero dizer, de maneira nenhuma, que deixe de existir a poesia experimental. Ao contrário: o feito vanguardista consistiu exatamente na abertura ilimitada de possibilidades experimentais. Acontece porém que, quando todas as experiências são possíveis e nenhuma possibilidade já experimentada está morta, cada qual está livre para seguir o seu próprio e singular caminho.
Que diríamos de um poeta ou crítico que hoje decretasse serem poemas só os experimentos vídeo-áudio-verbais? Ou só aquilo que fosse composto em versos metrificados e rimados? Ou, ao contrário, só aquilo que fosse escrito em versos livres? Sabemos hoje que, por princípio, não se pode em são juízo decretar o que é admissível e o que é inadmissível num poema; nem estabelecer critérios a priori pelos quais todos os poemas devam ser julgados.
O poeta moderno -e moderno aqui quer dizer "que vive depois que a experiência da vanguarda se cumpriu"- é capaz de empregar as formas que bem entender para fazer os seus poemas, mas não pode deixar de saber que elas constituem apenas algumas das formas possíveis; e o crítico deve reconhecer esse fato. Em tal situação, não pode haver nenhum caminho a ser indicado ou aberto por alguns poucos, para ser seguido pelos outros muitos. Não há mais vanguarda.
Nesse sentido, não há como não concordar com Haroldo de Campos quando, em seu ensaio "Poesia e Modernidade: Da Morte do Verso à Constelação. O Poema Pós-Utópico", afirma que "ao projeto totalizador da vanguarda, que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis".


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