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FERNANDO GABEIRA
Ninguém sai vivo daqui
Na aliança que domina o espaço público, quase todos desviam dinheiro, alguns sepultam CPIs
ÀS VEZES acho que estou sonhando: o Brasil não é isto
que está aí. Dolorosa pergunta me traz de novo ao chão: se o Brasil não é isto que está aí, por que isto
que está aí continua?
Vou livrá-los de toda a sociologia,
amém, e relatar simplesmente uma
experiência. Milhões foram desviados na compra de ambulâncias. Resolvemos investigar, recolhemos assinaturas e a CPI foi sepultada.
Os coveiros têm argumentos razoáveis, Copa do Mundo, eleições, o
próprio clima de terra arrasada depois do escândalo do mensalão.
Não pedimos jamais que se afastassem de sua sensatez. Queríamos
apenas anexar a ela o reconhecimento de que a minoria tinha obtido
apoio necessário e, portanto, com
uma causa definida, tinha direitos
constitucionais.
Começa a peregrinação por justiça. No Senado, eles tomam chá e detestam qualquer coisa que possa deteriorar as relações internas. Nada
de tensão. O que importa é manter
tudo no mais alto nível, preservar o
clima cordial.
Saio duvidando da parte final da
frase de Darcy Ribeiro: o Senado é o
céu e ainda não morremos. Passam
os vampiros, surgem os sanguessugas e amanhã, talvez, os traficantes
de órgãos humanos. Mas é preciso
que a cordialidade jamais abandone
o tremor de nossas xícaras de chá.
Resta a oposição na Câmara. Ela
não responde. Amarelou? Os que
têm medo não são tantos. Guimarães Rosa me socorre: não têm medo, apenas perderam a vontade de
ter coragem, o tempo é curto, Copa
do Mundo, eleições...
Volto para casa e me pergunto: o
que fazer quando passam um trator
nos seus direitos constitucionais? A
resposta é: recorrer à Justiça.
Mas a imagem de um coquetel
molotov emerge com a nitidez flamejante, torrando todos os resquícios do bom-mocismo. Não fui educado na Suíça nem temo que a lama
respingue nos punhos de renda. Tenho vontade de cantar os versos celebrizados pelo The Doors: "Ninguém sai vivo daqui".
Existe um limite para o pacifismo.
O espaço público em que nos movemos está dominado por uma aliança
delicada: quase todos desviam dinheiro, alguns têm a missão de sepultar CPIs. De forma literária: uns
queimam os ônibus e retiram as pessoas, outros queimam com todo
mundo lá dentro.
A facção do PMDB que está na
aliança queima ônibus com gente
dentro. Descendo à terra: sepultam
CPIs e só cedem quando forçados
pelo Supremo.
Não dão importância aos fatos
nem à opinião pública. O líder na
Câmara indica a mulher que controla o esquema das ambulâncias, o ministro contrata, o líder no Senado
apresenta emendas e o presidente
do Congresso sepulta a CPI. Um verdadeiro quarteto mágico. Todos do
PMDB.
Nos tempos de luta armada, era
necessário saber desmontar fuzis no
escuro. Hoje sua arma é luminosa e
aparece no lado esquerdo da tela: o
Google.
Grande parte dos bandidos no
Congresso podem ser abatidos com
o Google. Como isto que aí está deve
ser isto que aí estará nos próximos
anos, é preciso usar todas as táticas
para derrotá-los, sem perder energia para as coisas positivas que ainda
podem ser feitas.
Aqui, meu poeta, que, no momento, corre o Brasil e constata, de novo,
que há lugares e gente maravilhosa,
não se trata apenas de perguntar onde é que você estava quando os persas vieram. Aqui, vou ter que responder onde estava no tempo do irresistível avanço do Exército acaju.
Tudo isto supondo que alguém
perguntará por esse tempo, alguém
terá estômago para revivê-lo. Pode
ser um fim da história. Nesse caso,
responderemos com a história em
quadrinhos.
Nos anos 60, a história com grandes nomes iluminava um futuro brilhante. O presente era um recheio
modesto no sanduíche de epopéias
passadas e os amanhãs que cantam.
Hoje caímos no abismo do aqui e
agora. Multiplicaram-se os prazeres, poeta, mas como doem nossas
retinas. A digital é a única revolução
que nos resta. Vamos armar com ela
as principais trincheiras contra a invasão dos bárbaros.
Vamos morrer atirando bytes e pixels, alguma tinta e papel, que tanto
manejamos no passado. É a minha
modesta previsão do futuro. Você
mesmo é testemunha, poeta, de
quantas vezes me enganei do futuro.
Acostumei.
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