UOL


São Paulo, quinta-feira, 03 de julho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Tudo o que Todd Haynes permite

Gabriel Bouys - 2.set.2002/France Presse
O diretor Todd Haynes brinca com Julianne Moore, durante o Festival de Veneza, em 2002



Em "Longe do Paraíso", cineasta retorna ao melodrama hollywoodiano de Douglas Sirk para criticar o contexto social dos EUA


FRANCESCA ANGIOLILLO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

A dona-de-casa Cathy Whitaker vive, em 1957, o exemplo acabado do "american way of life" -marido bem-sucedido, dois filhos, uma bela casa, vida social agitada por festas. Para os padrões da época, ela está o mais perto que poderia almejar do sonho.
No entanto, não é preciso que transcorra muito tempo do novo filme de Todd Haynes para que a paisagem idílica que envolve Cathy (Julianne Moore) comece a rachar.
Racha e rui, fragorosamente: ao descobrir que o marido, Frank (Dennis Quaid), é homossexual, Cathy verá que suas amigas de todas os coquetéis não sabem lhe dar o ombro e que a única mão que se lhe estende -a do jardineiro, Raymond Deagan (Dennis Haysbert)- lhe é vetada por ser negra.
Parece enredo de filme adocicado dos anos 50 -e é.
Haynes, que assina roteiro e direção de "Longe do Paraíso", levou a sério a cartilha do melodrama, gênero que, no cinema, teve seu ápice na Hollywood daquela década.
"Eu queria que essa história incorporasse um retorno ao melodrama. Estava interessado na dinâmica social que ele representa e em contar o tipo de histórias que ele conta", explica o cineasta, 42, falando à Folha, por telefone, de Portland (noroeste dos EUA).
Tanto o termo como o universo que ele designa caíram em desuso, à medida que foram associados ao gosto popular e à lágrima fácil. No entanto, como ressalta Haynes, o melodrama é "uma estrutura muito complexa e sutil, que combina realismo com estilo e uma certa reciclagem de estereótipos, de modo a tornar esses estereótipos reais de novo".
O realizador aplica essa lógica interna tanto aos temas de "Longe do Paraíso" como à sua forma, em que retrabalha os clichês visuais do gênero. "Tudo nesse filme vem de outros filmes", assume. "Particularmente, vem de Douglas Sirk." Mais particularmente ainda, deve muito a um determinado filme de Sirk (1897-1987), "Tudo o que o Céu Permite".
A revisitação vai das cores ao enquadramento -a câmera distante, que olha os personagens como se estivessem sobre um palco, ou vistos através de uma janela sobre a situação social que se retrata- e ao tom algo forçado dos diálogos. O processo é tão estridente que o espectador, ao mesmo tempo em que reconhece a atmosfera, desconfia de que está vendo, na verdade, um retrato burlesco dos dramas que enfoca.
É conveniente dizer, aqui, que um melodrama que faz jus ao nome tem de obedecer a uma regra central: em algum momento, seus protagonistas devem passar por uma mudança profunda, ocasionada por uma situação externa a eles. Esse mecanismo não falha em "Longe do Paraíso", e a forma narrativa o sublinha.
"O objetivo em "Longe do Paraíso" era, em definitivo, partir de algo que parecia completamente artificial e patético para chegar ao ponto em que se percebe que o filme não está fazendo troça de seus personagens, mas que eles são pessoas reais, com lutas reais, lutas que ainda existem hoje."
A carreira de Haynes compõe-se de sete filmes, nos quais trafegou por diferentes épocas, exercitando, assim, estilos também distintos. Em 1998, fez, por exemplo, "Velvet Goldmine", que abordava o glam rock dos 70. Dele, passou ao exercício formal de "Longe do Paraíso". No próximo, que começa a escrever em breve, voltará à cena musical para contar uma "estranha biografia" de Bob Dylan, "por meio de sete personagens, simbólicos" de fases da vida do astro de "Blowin" in the Wind".
Ainda que o conjunto pareça heterogêneo, há um fato comum entre as obras: Haynes se assume como um cineasta dos que estão à margem -seja essa segregação por escolha, seja por imposição social.
"Eu adoro esses personagens. Meus filmes, em sua maioria, não são sobre heróis, sobre pessoas que mudam o mundo. São muito mais sobre todos nós, que estamos sujeitos ao mundo."
Nesse quadro, a condição feminina é a que lhe tem fornecido seus "outsiders" favoritos. Assim, apesar de os dramas que envolvem os dois homens serem aparentemente mais pungentes, é sobre o de Cathy que o diretor se debruça com mais cuidado. "Em muitas maneiras, ela é a menos livre dos três personagens, a menos apta a perseguir e contentar seus desejos."


Texto Anterior: Programação de TV
Próximo Texto: Frase
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.