São Paulo, sábado, 03 de julho de 2010

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CRÍTICA FICÇÃO

Coletânea de contos faz uso sofisticado da indefinição

Escritas por Aníbal Machado, histórias registram avanço urbano no Brasil

MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Autor bissexto que teve importante atuação na cena literária e teatral brasileira, Aníbal Machado (1894-1964) ficou mais conhecido por alguns dos contos reunidos neste volume fundido e refundido durante as décadas de 1940 e 50.
Dado o amplo período de produção -a maior parte dos contos começou a ser escrita nos anos 1930-, o conjunto mostra, a despeito da qualidade, fatura desigual tanto nos resultados obtidos quanto na proposta artística.
O realismo está mais marcado em alguns e há busca por uma figuração mais onírica e alucinatória em outros.
No plano do conteúdo, evidencia-se o mote da transformação das cidades brasileiras já apontado por vários críticos, cujo símbolo maior é o surgimento dos "arranha-céus" (as aspas são importantes para entendermos que esses edifícios tinham, então, por volta de 12 andares).
Do ponto de vista formal, há uma interessante tendência de muitas histórias conterem um fator de indefinição.
Esse "diluir-se na bruma", para pegar a expressão do conto "O Iniciado do Vento", faz com que a maioria das narrativas, até mesmo as de feitio mais realista, revelem em pelo menos algum ponto certo aspecto misterioso, vago, irresoluto.
Assim, em "O Iniciado", não se sabe o que afinal sucede com Zé da Curva nem, em "O Ascensorista", as reais circunstâncias do crime de morte em que se envolveu o protagonista.
Ou ainda quem é o enigmático personagem que fala latim no meio do sertão em "Viagem aos Seios de Duília" ou se Ataxerxes enviou mesmo o telegrama que tanto o obseda em "O Telegrama de Ataxerxes".
A maneira com que Aníbal Machado introduz essa indefinição (ou espalha as brumas sobre sua narrativa, para seguir com a metáfora) é bastante sofisticado e, paradoxalmente, faz com que a história, em vez de sofrer com isso, torne-se mais rica e matizada.

CIÚMES
É por essa razão que o conto "A Morte da Porta-Estandarte", por exemplo, não ficou datado mesmo com um começo que parece investir em velhos preconceitos sociais e raciais ao focar a história de um negro louco de ciúmes pela namorada durante o Carnaval.
Ao inserir os personagens dos estrangeiros e, a partir daí, deliberadamente tirar o foco do assassino e do assassinato para percorrer diversos outros pontos de vista enganados e enganosos, o autor transforma o que poderia ser um mero retrato um tanto simplista da realidade num quadro nuançado, que sugere interpretações mais amplas, tanto psicológicas quanto sociais.

MARCELO PEN é professor de teoria literária da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP



A MORTE DA PORTA-ESTANDARTE TATI, A GAROTA E OUTRAS HISTÓRIAS

AUTOR Aníbal Machado
EDITORA José Olympio
QUANTO R$ 40 (320 págs.)
AVALIAÇÃO bom



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