São Paulo, domingo, 03 de julho de 2011

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Mônica Bergamo

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Sem sinal

Rafael Andrade - 12.nov.2010/Folhapress
Bia Lessa em sua casa, no Rio

O Brasil possui mais linhas de telefone celular do que habitantes, mas ainda tem gente, das mais requisitadas, que resiste a ficar acessível

O escritor Luis Fernando Verissimo "ouviu dizer" que a próxima invenção será um telefone celular que "faz cafezinho". Milton Hatoum descobriu recentemente que alguns aparelhos permitem acessar a internet. João Ubaldo Ribeiro brinca: "Tem todo tipo de vigarista pedindo dinheiro pelo celular. Evito".


 
Maria Bethânia reclama porque não consegue encontrar a diretora artística de seus shows, Bia Lessa, na hora em que precisa. "Digo para ela ficar tranquila, sempre vou estar por perto. Não exatamente quando ela quer, mas um pouco depois", conta Bia, que se junta ao grupo dos que se recusam a ter um telefone celular.


 
Caetano Veloso nunca teve celular. E diz que só sente falta quando marca programa com um dos três filhos. Com o aparelho, ficaria mais seguro de não se desencontrarem. "Mas na hora dá tudo certo", diz ele à repórter Thais Bilenky.


 
"Pra mim, não existe", afirma o ator Lima Duarte. "Não falo [por telefone] nem com os autores de novela. Trabalho na Globo. Recebo muito pedido de entrevista. Se atender a todos os telefonemas, não faço mais nada." Os colegas também importunam. "Quando estou gravando novela de elenco grande, de diretor muito chato, ficam me ligando: [perguntam] "Escuta, aquela fala vai ser assim mesmo?"."


 
O Brasil tem mais linhas de telefones móveis do que habitantes. Em maio, o país chegou à marca de 215 milhões de contas para uma população de 194 milhões de habitantes, de acordo com a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações).


 
Os que estão na "contramão" da história dizem que preferem manter a privacidade. João Ubaldo vai além: ele tem duas linhas de telefone fixo em casa. Só dá o número de uma delas para os mais chegados. Quando a outra toca, atende se der na telha. Outro dia, atendeu "um garçom que diz ter me servido por anos num restaurante que nunca frequentei, que nem sei onde fica". O que ele gosta mesmo é do Skype, já que passa o dia inteiro na frente do computador. "E não tem que pagar."


 
Amigos de Caetano nem sempre o encontram em casa quando aparecem de surpresa à noite, antes de ir para a balada. Acabam ficando sem sua companhia. O músico Jorge Mautner, entusiasta do celular, conta que, para marcar um programa com Caetano, "tenho sempre a preocupação de ligar na casa dele antes", para não se desencontrarem.


 
A diretora Bia Lessa, que também dirige shows de Vanessa da Mata, Ana Carolina e Margareth Menezes, já teve quase 15 aparelhos. Perdeu todos. Família, amigos e funcionários têm sempre à mão telefones de sua casa, da produtora, de seu dentista e da academia onde ela faz pilates. Só assim para localizá-la.


 
Dentro de um táxi, há cerca de três anos, Bia estava a caminho do aeroporto de Congonhas, com o livro "Verdade Tropical", de Caetano Veloso, aberto no colo. "Pensei: "Gente, não quero esse negócio [o celular] pra mim"." Ela se desfez do telefone e nunca mais teve um. Recentemente, numa viagem curta, levou dois aparelhos para emergências. Em 12 horas, perdeu os dois.


 
Para João Ubaldo, vencedor do Prêmio Camões 2008 e membro da ABL (Academia Brasileira de Letras), "as pessoas desenvolvem necessidade sem necessidade". "Tenho certeza de que, no dia em que tiver celular e usar, vou passar a precisar desesperadamente."


 
Verissimo, 74, fala que chegou à idade em que "toda novidade tecnológica é uma espécie de afronta". Sua resistência ao celular "só aumenta". Mas quando a coisa aperta e ele precisa falar com alguém da rua, fila o de sua mulher, Lúcia, "como antigamente se filava cigarro".


 
Hatoum chegou a dar o número do celular de sua mulher, Ruth Lanna, a duas ou três pessoas. Arrependeu-se. "Ela reclama." Já João Ubaldo não sabe o número de Berenice, com quem é casado. E Lima Duarte, que mora em Indaiatuba (SP) e trabalha no Rio, passa grande parte do tempo em trânsito. O celular do motorista é o que salva a família.


 
Num escritório em Pinheiros, sem telefone nem internet, Hatoum está quase acabando seu romance "O Lugar Mais Sombrio" (nome provisório). Não checa e-mails diariamente. "As pessoas são muito ansiosas. Mandam duas, três vezes a mesma mensagem. Um dia ainda saio da rede", promete. "Uso muito orelhão. E tem gente que nem sabe que isso ainda existe!"


 
O escritor, que ganhou três vezes o Prêmio Jabuti, diz que tira proveito da mania pelo celular. "Gosto de ouvir conversa dos outros. Se for picante, melhor ainda." Algumas vão parar em suas crônicas. "Já ouvi relatos dramáticos de separação, confidências amorosas, perda de emprego, briga. Eu sei que é pecado, mas não sou beato, nem candidato."


 
O ex-primeiro-ministro Tony Blair não teve celular na década em que comandou o Reino Unido (1997-2007). Sua mulher, Cherie, contou à coluna, quando esteve no Brasil, em 2010, que, como suas ligações tinham que ser monitoradas, ele não tinha linha própria. Ao deixar o governo, providenciou uma. E mandou torpedo a uma jornalista: "Oi, tudo bem?". Acostumado a dispensar apresentações, ficou pasmo com a resposta: "Quem está falando?".


 
O cineasta português Manoel de Oliveira, 102, contou certa vez a Lima Duarte, 81, uma "história maravilhosa", segundo o ator, que resume a "chateação" que é a telefonia móvel. Dois homens conversavam na avenida Paulista. Incomodados com o ruído dos carros, resolveram sacar o celular para conversar "cara a cara". A história acabou virando um curta-metragem.

CAETANO VELOSO
"Quando combino algo com meus filhos, acho que seria bom ter celular, mas na hora dá certo"

MILTON HATOUM
"Tem gente que nem sabe que orelhão ainda existe!"


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