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CARLOS HEITOR CONY
Considerações sobre a possibilidade do amanhã
Volta e meia, tomo conhecimento de que gente importante, filósofos, sábios, gênios
de diversos tamanhos e feitios, negaram e continuam negando a
existência do tempo e do movimento. Contam que Diógenes,
considerado um cínico pelos seus
contemporâneos, estava um dia
no aerópago ouvindo os sábios da
época que provavam, séculos antes de Einstein, que não havia
movimento e que tudo era relativo.
Quando deram vez e voz a Diógenes, ele nada disse. Simplesmente se levantou e foi embora.
Não havendo movimento e tudo
sendo relativo, tanto fazia que ele
ficasse ou não saísse.
Lembrei isso quando ouvi a frase mais banal que rola entre dois
amantes ou candidatos a isso:
""Amanhã, talvez". O que será o
amanhã? Se tempo e movimento
não existem, existirá o amanhã?
Passei toda a minha infância
sem saber o que era ""amanhã".
Pensava que fosse um tempo remoto, nebuloso, que nunca chegaria, pois no dia seguinte sempre
havia um outro amanhã que
nunca acontecia.
Tudo era empurrado para
amanhã, amanhã eu ganharia a
bicicleta nova, a Philips inglesa e
cromada, igual à do meu irmão.
Amanhã ganharia a bola de futebol Sparta nš 5 -eu tinha uma
Sparta nš 3 e achava que a nš 5
era o estágio mais avançado da
felicidade humana, a realização
da utopia definitiva, em forma esférica e cheirando a couro novo.
Eu sabia que haveria um dia seguinte, isso era fácil de entender e
provar. No dia seguinte, eu teria
de ir à escola, de fazer os exercícios, saber as lições. Mas o dia seguinte logo chegava, após cada
noite dormida, e não o identificava com o amanhã eterno, o movediço amanhã distante e improvável.
Scarlett O'Hara, personagem
que nunca citei, não perdeu por
esperar. Vou lembrá-la sem entusiasmo. Quando tinha um problema a resolver, uma decisão a tomar, a heroína de ""...E o Vento
Levou" transferia problema e decisão para o amanhã, nunca para
o dia seguinte: ""Amanhã pensarei
nisso".
Ao contrário do filho, meu pai
era otimista. Todas as noites, antes de dormir, dizia como uma
prece para si mesmo e para os outros: ""Amanhã farei grandes coisas".
Nunca fez grandes coisas porque o amanhã era sempre o amanhã. No dia seguinte, ele tratava
de viver a vida, fazer o que podia
ser feito, mas isso não o desanimava. Adiava-se para o amanhã,
quando faria grandes coisas que
nunca seriam feitas.
Em criança, eu perguntava a todos os adultos que me rodeavam
o que era o amanhã. Não apenas
o amanhã do pai, que nunca faria
porra nenhuma, além de viver
maravilhosamente à maneira dele. Mas o meu amanhã, no qual
me aguardavam a bola Sparta nš
5, a bicicleta nova, a Philips inglesa e cromada, o direito de molhar
o pão com manteiga no café da
manhã, as calças compridas, o cigarro, o ficar acordado até tarde
ouvindo o rádio de ondas curtas
do pai transmitir o noticiário da
BBC, o sino da torre de Londres
soando majestosamente no silêncio das noites do Lins de Vasconcelos.
Bem verdade que, umas pelas
outras, essas coisas aconteceram.
Mas, quando aconteceram, não
tiveram graça alguma. O amanhã era infinitamente adiado. De
maneira que, quando a moça me
disse, falando sério, ""amanhã,
talvez", eu fiquei desesperado. Ao
contrário de Alfredo Germont,
que na ""Traviata" ficou feliz
quando a Dama das Camélias lhe
prometeu o ""domani", tampouco
me consolo ou lamento ouvindo o
""Yesterday" da dupla Lennon-McCartney.
O mais prudente seria seguir o
conselho mais poético jamais dado à humanidade: olhar os lírios
do campo que não fiam nem tecem, e, no entanto, nem Salomão
com toda a sua pompa vestiu-se
igual a um deles. O conselho foi
dado no mesmo contexto em que
ficou a grave advertência: a cada
dia bastam as suas preocupações,
""sufficit diei malitia sua". O certo
seria também aproveitar o dia
que o poeta Horácio cantou, sabendo que nada se deveria esperar do dia seguinte.
E foi por aí que descobri o mais
trágico naquela frase banal do
""amanhã, talvez". A peçonha não
estava no amanhã, mas no talvez.
De uma forma ou de outra, o
amanhã viria, de cambulhada
com o dia seguinte. Mas o talvez é
que me preocupava. Poderia vir
ou não vir, não vir nunca e não
apenas no amanhã que estava
próximo demais.
Felizmente, o tempo, mesmo
não existindo, passou. A palavra
amanhã perdeu sua dignidade,
eu a vi escrita sob um galo de barro colorido na porta de um armazém de secos e molhados no Andaraí-Leopoldo: ""Fiado só amanhã". E ao longo da vida foram
muitas as vezes em que dei marcha a ré após ouvir a frase que
soava como uma sentença: ""Volte
amanhã".
Apesar da decepção, não sofria
com o fiado prometido só amanhã nem com a obrigação de voltar ao distrito em busca de um
certificado de residência. O que
ainda me perturba é a possibilidade de que o amanhã continue
sendo a praia a que nunca se chega, onde nos esperam a bicicleta
que não teremos, a bola Sparta nš
5 que não ganharemos, a amante
que nunca amaremos.
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