São Paulo, sexta-feira, 03 de agosto de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

Considerações sobre a possibilidade do amanhã

Volta e meia, tomo conhecimento de que gente importante, filósofos, sábios, gênios de diversos tamanhos e feitios, negaram e continuam negando a existência do tempo e do movimento. Contam que Diógenes, considerado um cínico pelos seus contemporâneos, estava um dia no aerópago ouvindo os sábios da época que provavam, séculos antes de Einstein, que não havia movimento e que tudo era relativo.
Quando deram vez e voz a Diógenes, ele nada disse. Simplesmente se levantou e foi embora. Não havendo movimento e tudo sendo relativo, tanto fazia que ele ficasse ou não saísse.
Lembrei isso quando ouvi a frase mais banal que rola entre dois amantes ou candidatos a isso: ""Amanhã, talvez". O que será o amanhã? Se tempo e movimento não existem, existirá o amanhã?
Passei toda a minha infância sem saber o que era ""amanhã". Pensava que fosse um tempo remoto, nebuloso, que nunca chegaria, pois no dia seguinte sempre havia um outro amanhã que nunca acontecia.
Tudo era empurrado para amanhã, amanhã eu ganharia a bicicleta nova, a Philips inglesa e cromada, igual à do meu irmão. Amanhã ganharia a bola de futebol Sparta nš 5 -eu tinha uma Sparta nš 3 e achava que a nš 5 era o estágio mais avançado da felicidade humana, a realização da utopia definitiva, em forma esférica e cheirando a couro novo.
Eu sabia que haveria um dia seguinte, isso era fácil de entender e provar. No dia seguinte, eu teria de ir à escola, de fazer os exercícios, saber as lições. Mas o dia seguinte logo chegava, após cada noite dormida, e não o identificava com o amanhã eterno, o movediço amanhã distante e improvável.
Scarlett O'Hara, personagem que nunca citei, não perdeu por esperar. Vou lembrá-la sem entusiasmo. Quando tinha um problema a resolver, uma decisão a tomar, a heroína de ""...E o Vento Levou" transferia problema e decisão para o amanhã, nunca para o dia seguinte: ""Amanhã pensarei nisso".
Ao contrário do filho, meu pai era otimista. Todas as noites, antes de dormir, dizia como uma prece para si mesmo e para os outros: ""Amanhã farei grandes coisas".
Nunca fez grandes coisas porque o amanhã era sempre o amanhã. No dia seguinte, ele tratava de viver a vida, fazer o que podia ser feito, mas isso não o desanimava. Adiava-se para o amanhã, quando faria grandes coisas que nunca seriam feitas.
Em criança, eu perguntava a todos os adultos que me rodeavam o que era o amanhã. Não apenas o amanhã do pai, que nunca faria porra nenhuma, além de viver maravilhosamente à maneira dele. Mas o meu amanhã, no qual me aguardavam a bola Sparta nš 5, a bicicleta nova, a Philips inglesa e cromada, o direito de molhar o pão com manteiga no café da manhã, as calças compridas, o cigarro, o ficar acordado até tarde ouvindo o rádio de ondas curtas do pai transmitir o noticiário da BBC, o sino da torre de Londres soando majestosamente no silêncio das noites do Lins de Vasconcelos.
Bem verdade que, umas pelas outras, essas coisas aconteceram. Mas, quando aconteceram, não tiveram graça alguma. O amanhã era infinitamente adiado. De maneira que, quando a moça me disse, falando sério, ""amanhã, talvez", eu fiquei desesperado. Ao contrário de Alfredo Germont, que na ""Traviata" ficou feliz quando a Dama das Camélias lhe prometeu o ""domani", tampouco me consolo ou lamento ouvindo o ""Yesterday" da dupla Lennon-McCartney.
O mais prudente seria seguir o conselho mais poético jamais dado à humanidade: olhar os lírios do campo que não fiam nem tecem, e, no entanto, nem Salomão com toda a sua pompa vestiu-se igual a um deles. O conselho foi dado no mesmo contexto em que ficou a grave advertência: a cada dia bastam as suas preocupações, ""sufficit diei malitia sua". O certo seria também aproveitar o dia que o poeta Horácio cantou, sabendo que nada se deveria esperar do dia seguinte.
E foi por aí que descobri o mais trágico naquela frase banal do ""amanhã, talvez". A peçonha não estava no amanhã, mas no talvez. De uma forma ou de outra, o amanhã viria, de cambulhada com o dia seguinte. Mas o talvez é que me preocupava. Poderia vir ou não vir, não vir nunca e não apenas no amanhã que estava próximo demais.
Felizmente, o tempo, mesmo não existindo, passou. A palavra amanhã perdeu sua dignidade, eu a vi escrita sob um galo de barro colorido na porta de um armazém de secos e molhados no Andaraí-Leopoldo: ""Fiado só amanhã". E ao longo da vida foram muitas as vezes em que dei marcha a ré após ouvir a frase que soava como uma sentença: ""Volte amanhã".
Apesar da decepção, não sofria com o fiado prometido só amanhã nem com a obrigação de voltar ao distrito em busca de um certificado de residência. O que ainda me perturba é a possibilidade de que o amanhã continue sendo a praia a que nunca se chega, onde nos esperam a bicicleta que não teremos, a bola Sparta nš 5 que não ganharemos, a amante que nunca amaremos.


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