São Paulo, sábado, 03 de agosto de 2002

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WALTER SALLES

O mundo revelado por um extraordinário fotógrafo indígena

Caminho de novo através da América Latina. Percorro mais exatamente Cuzco, que Neruda descrevia como "o velho e remoto coração da América". É a maior de todas as cidades pré-colombianas, com 300 mil pessoas aninhadas nas montanhas andinas no início do século 16 e apenas 40 mil em 1825, resultado do genocídio comandado pelos espanhóis.
Olhando para Cuzco em um momento em que boa parte do continente sul-americano entra novamente em convulsão, é difícil não se lembrar de tudo que se perdeu com a destruição da civilização inca. Um conhecimento único da astronomia, da irrigação da terra, da medicina. Uma visão original de mundo, substituída por relações de dependência que vigoram até hoje. A maldita sujeição imposta pelo colonialismo, a mimetização do centro, que explicam em parte os sobressaltos cíclicos que vivemos.
Igrejas e monumentos com traços europeus foram erguidos por cima da arquitetura original da cidade. Boa parte desse conjunto foi varrida por fortíssimos terremotos. A terra tremeu pela última vez em 1950. Um menino de dez anos aponta para o que sobrou desse caos com o dedo: "O que ficou em pé foi construído pelos incas. O que caiu por terra, pelos incapazes". E sorri, feliz da vida. Quem sabe sabe.
Em Cuzco, os prédios milenares que teimam em resistir parecem punhos erguidos contra o céu. Mas a resistência vai além da arquitetura. Um movimento político indígena e nacionalista, indígena e antiimperialista, o Apra, teve grande influência na cidade desde o início do século passado. E, por volta de 1920, um movimento cultural que negava os laços impostos pelo centro e buscava dialogar com o passado pré-colombiano também se originou em Cuzco. O estúdio de um fotógrafo, o descendente de índios aimara Martin Chambi, era o ponto de encontro dessa corrente, chamada de "escola cuzquenha".
Agrupava pintores, escritores e jornalistas que defendiam uma cultura autóctone, radicalmente indígena. A obra de Chambi, representativa dessa efervescência artística, ficou esquecida durante quase 50 anos. O acaso fez com que seus mais de 30 mil negativos, muitos deles impressos em placas de vidro, fossem redescobertos em 1988, graças ao encontro entre um fotógrafo espanhol e um filho de Chambi. Seguiram-se exposições em várias partes do mundo e um livro patrocinado pelo Circulo de Bellas Artes de Madrid.
Para quem não conhecia sua obra, como eu, cada imagem é uma revelação. E um choque. Chambi talvez seja o primeiro fotógrafo latino-americano a retratar o mundo em que vive e os rostos a sua volta de forma rigorosamente includente e original. O que está em jogo é a criação de um olhar próprio, através de uma certa descolonização do olhar.
Estamos acostumados a rememorar nosso passado através de imagens deixadas por artistas estrangeiros que passaram por nossas latitudes, como Post, Rugendas ou Hildebrandt. O que Chambi nos traz é o contracampo desse olhar estrangeiro, proposto por um artista que quis recriar o mundo a partir de sua aldeia.
Chambi nasceu numa pequena casa de agricultores nos Andes, em 1891, numa época que tinha mais pontos em comum com a nossa do que se poderia imaginar. Um processo de desnacionalização similar ao da atual globalização estava em curso. Empresas estrangeiras controlavam as estradas de ferro, o correio e o telégrafo, o petróleo e até o sistema tributário do pais. Chambi trabalhou ainda criança numa empresa de mineração americana. Aprendeu os rudimentos da sua profissão com o fotógrafo da companhia.
Logo desenvolveu sua própria gramática visual -uma noção impressionante do quadro, da luz e da mise-en-scène. Abriu um pequeno estúdio em Cuzco. Seus primeiros clientes, paradoxalmente, foram os membros da burguesia da cidade. Mas, ao lado desses personagens, Chambi passa a retratar seus pares, homens e mulheres da rua, que convida a posar em seu estúdio.
Segue-se uma espécie de democratização da imagem, que ele amplia ao levar a câmera para a rua, como os cineastas neo-realistas fizeram na Itália do pós-guerra. São rostos dignos e graves, de uma força impressionante, imagens que muitas vezes contêm um humor desconcertante.
Não é um olhar miserabilista, nem dogmático. As patrulhas ideológicas da época reclamavam de que não havia violência em seu olhar ou de que havia um certo "exotismo e pictorialismo" em suas imagens. A questão é que sua militância não era óbvia. Numa das suas raras entrevistas, ele disse: "Eu me sinto como um representante de minha raça. Ela fala em minhas fotografias".
Chambi retratou a sua comunidade de dentro. Fundou, deu nome, à fotografia peruana. Junto com outros fotógrafos, como o mexicano Álvarez Bravo, Chambi ajudou a lançar as bases de uma fotografia latino-americana autônoma e original. A sua obra sugere que é possível estabelecer um olhar próprio, na contracorrente da tendência dominante. Não é pouco, e sua trajetória ganha ainda mais relevância no momento de ruptura que estamos vivendo.



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