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WALTER SALLES
O mundo revelado por um extraordinário fotógrafo indígena
Caminho de novo através
da América Latina. Percorro
mais exatamente Cuzco, que Neruda descrevia como "o velho e
remoto coração da América". É a
maior de todas as cidades pré-colombianas, com 300 mil pessoas
aninhadas nas montanhas andinas no início do século 16 e apenas 40 mil em 1825, resultado do
genocídio comandado pelos espanhóis.
Olhando para Cuzco em um
momento em que boa parte do
continente sul-americano entra
novamente em convulsão, é difícil
não se lembrar de tudo que se perdeu com a destruição da civilização inca. Um conhecimento único
da astronomia, da irrigação da
terra, da medicina. Uma visão
original de mundo, substituída
por relações de dependência que
vigoram até hoje. A maldita sujeição imposta pelo colonialismo, a
mimetização do centro, que explicam em parte os sobressaltos cíclicos que vivemos.
Igrejas e monumentos com traços europeus foram erguidos por
cima da arquitetura original da
cidade. Boa parte desse conjunto
foi varrida por fortíssimos terremotos. A terra tremeu pela última
vez em 1950. Um menino de dez
anos aponta para o que sobrou
desse caos com o dedo: "O que ficou em pé foi construído pelos incas. O que caiu por terra, pelos incapazes". E sorri, feliz da vida.
Quem sabe sabe.
Em Cuzco, os prédios milenares
que teimam em resistir parecem
punhos erguidos contra o céu.
Mas a resistência vai além da arquitetura. Um movimento político indígena e nacionalista, indígena e antiimperialista, o Apra,
teve grande influência na cidade
desde o início do século passado.
E, por volta de 1920, um movimento cultural que negava os laços impostos pelo centro e buscava dialogar com o passado pré-colombiano também se originou
em Cuzco. O estúdio de um fotógrafo, o descendente de índios aimara Martin Chambi, era o ponto de encontro dessa corrente,
chamada de "escola cuzquenha".
Agrupava pintores, escritores e
jornalistas que defendiam uma
cultura autóctone, radicalmente
indígena. A obra de Chambi, representativa dessa efervescência
artística, ficou esquecida durante
quase 50 anos. O acaso fez com
que seus mais de 30 mil negativos,
muitos deles impressos em placas
de vidro, fossem redescobertos em
1988, graças ao encontro entre um
fotógrafo espanhol e um filho de
Chambi. Seguiram-se exposições
em várias partes do mundo e um
livro patrocinado pelo Circulo de
Bellas Artes de Madrid.
Para quem não conhecia sua
obra, como eu, cada imagem é
uma revelação. E um choque.
Chambi talvez seja o primeiro fotógrafo latino-americano a retratar o mundo em que vive e os rostos a sua volta de forma rigorosamente includente e original. O
que está em jogo é a criação de
um olhar próprio, através de uma
certa descolonização do olhar.
Estamos acostumados a rememorar nosso passado através de
imagens deixadas por artistas estrangeiros que passaram por nossas latitudes, como Post, Rugendas ou Hildebrandt. O que Chambi nos traz é o contracampo desse
olhar estrangeiro, proposto por
um artista que quis recriar o
mundo a partir de sua aldeia.
Chambi nasceu numa pequena
casa de agricultores nos Andes,
em 1891, numa época que tinha
mais pontos em comum com a
nossa do que se poderia imaginar.
Um processo de desnacionalização similar ao da atual globalização estava em curso. Empresas estrangeiras controlavam as estradas de ferro, o correio e o telégrafo, o petróleo e até o sistema tributário do pais. Chambi trabalhou
ainda criança numa empresa de
mineração americana. Aprendeu
os rudimentos da sua profissão
com o fotógrafo da companhia.
Logo desenvolveu sua própria
gramática visual -uma noção
impressionante do quadro, da luz
e da mise-en-scène. Abriu um pequeno estúdio em Cuzco. Seus
primeiros clientes, paradoxalmente, foram os membros da burguesia da cidade. Mas, ao lado
desses personagens, Chambi passa a retratar seus pares, homens e
mulheres da rua, que convida a
posar em seu estúdio.
Segue-se uma espécie de democratização da imagem, que ele
amplia ao levar a câmera para a
rua, como os cineastas neo-realistas fizeram na Itália do pós-guerra. São rostos dignos e graves, de
uma força impressionante, imagens que muitas vezes contêm um
humor desconcertante.
Não é um olhar miserabilista,
nem dogmático. As patrulhas
ideológicas da época reclamavam
de que não havia violência em
seu olhar ou de que havia um certo "exotismo e pictorialismo" em
suas imagens. A questão é que
sua militância não era óbvia. Numa das suas raras entrevistas, ele
disse: "Eu me sinto como um representante de minha raça. Ela
fala em minhas fotografias".
Chambi retratou a sua comunidade de dentro. Fundou, deu nome, à fotografia peruana. Junto
com outros fotógrafos, como o
mexicano Álvarez Bravo, Chambi
ajudou a lançar as bases de uma
fotografia latino-americana autônoma e original. A sua obra sugere que é possível estabelecer um
olhar próprio, na contracorrente
da tendência dominante. Não é
pouco, e sua trajetória ganha ainda mais relevância no momento
de ruptura que estamos vivendo.
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