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São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2003

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FESTA LITERÁRIA DE PARATI

Patrícia Melo talha o ciúme e a autodestruição de um maestro em "Valsa Negra"

Sinfonia do adeus

CASSIANO ELEK MACHADO
ENVIADO ESPECIAL A PARATI

O casario colonial de Parati vai escutar neste domingo os ecos da primeira audição de uma valsa perturbadora e triste. Nessa melodia, não há nada de "Danúbio Azul", de dois-pra-lá-dois-pra-cá, do papel rosa e lírico dos bombons Sonho de Valsa.
Em sua participação na Festa Literária Internacional de Parati, que termina hoje, a escritora paulista Patrícia Melo traz a público pela primeira vez trechos de seu romance "Valsa Negra" (Companhia das Letras), a história de um grande ciúme protagonizada por um maestro.
Com seu quinto romance, Patrícia Melo, 41, chega a seu trabalho menos Patrícia Melo. Escritora que ganhou destaque na literatura brasileira (e em inusuais 16 países) com uma prosa talhada com uma narrativa cinematográfica, estocada de crimes e violências variadas, ela desacelera os cortes brutos de sua prosa e deixa de lado pela primeira vez as "mortes matadas".
Mas ainda que discretamente, o romance ambientado no universo da música clássica, e não nos becos infectos de "Inferno" e "O Matador" (que teve sua adaptação para o cinema, "O Homem do Ano", recém-lançada), também traz a marca da maldade, a "visão negra" que Melo, em entrevista à Folha, diz enxergar no que faz. Leia a seguir trechos da conversa.
 
Folha - O "Dicionário das Escritoras Brasileiras" de Nelly Novaes Coelho classifica você como uma Sherazade às avessas, que "no lugar de revelar o lado maravilhoso da vida humana revela o lado terrível". De onde vem esse pessimismo, que também está em "Valsa Negra"?
Patrícia Melo -
De uma certa forma, sou mesmo pessimista em relação à idéia de progresso da humanidade. Lembro-me sempre do escritor argentino Ernesto Sábato, que quando lhe perguntavam por que abandonara a ciência para fazer literatura dizia: "Porque a ciência tem uma capacidade de evolução, de progresso fabulosa, mas não adianta nada, porque não há progresso no coração humano". Tenho um pouco essa sensação, de que a humanidade é um caso perdido, de que o poder de construção do ser humano é igual ao seu poder de destruição. Minha literatura tem um pouco dessa visão negra.

Folha - Ao longo do livro você fala que os maestros são solitários, que é a profissão melhor para fingir e que eles têm que lidar com a perfídia. Qual dessas características te fez escolher um maestro para ser o protagonista dessa história?
Melo -
A escolha do perfil do personagem tem que atender ao conteúdo dramático da história. Esse livro é essencialmente sobre ciúmes e autodestruição, e a idéia de um maestro é exatamente a de uma figura com esse sentimento de posse. Ele é uma figura um pouco autista, de um mundo paralelo, às vezes autoritário. Uma orquestra talvez seja um dos poucos espaços da arte onde a hierarquia realmente importa.

Folha - No final de "Valsa Negra", você faz agradecimentos ao pianista Arnaldo Cohen e ao maestro Roberto Minczuk. O personagem não foi inspirado em John Neschling?
Melo -
A Osesp [Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo] foi muito importante para mim, e o Neschling (seu regente) também. Ele me deu muita informação musical. Ele é um maestro que tem esse perfil que eu falei, de muita liderança e domínio total da orquestra. Na convivência com ele, entendi um pouco o que é essa loucura do maestro, a posição solitária que fica o maestro, entre os músicos e a interpretação que ele busca.

Folha - "Valsa Negra" é conduzido pela loucura do seu protagonista. A loucura, o inferno de cada um, sempre esteve nos seus livros. Você enxerga elementos comuns em sua ficção?
Melo -
Algumas coisas estão sempre presentes, sim. Primeiro, uma atitude de espanto diante da morte. "Acqua Toffana" é um livro sobre crueldade. "Matador" é sobre a banalização da maldade. "O Elogio da Mentira" trata da falência artística. "O Inferno", da exclusão social. O tema sempre passa pela indignação com a idéia da finitude das coisas.

Folha - A revista "Time" fez há quatro anos um mapa das lideranças do próximo milênio na América Latina e incluiu você, que era chamada ali de uma autora de romances policiais que abriram as portas para a literatura pop. O que você acha de ser chamada de uma autora pop?
Melo -
Acho que o rótulo pop tem muita relação com minha ligação com o cinema. Minha literatura é bem imagética e tem um ritmo narrativo bastante vertiginoso. Quanto ao romance policial, eu acho que é incompreensão da crítica literária no Brasil. O romance policial sempre precisou da cidade para existir. Surge de patologias urbanas, como a violência, a diferença social, a fome. O Brasil só foi ter uma realidade urbana tardiamente, depois dos anos 60. Não temos tradição de romance policial. Assim, qualquer escritor que trate de patologias urbanas e que adote a questão da violência é automaticamente rotulado como policial. Não me considero nem pop nem escritora policial.

Folha - Você falou da relação com o cinema, mas "Valsa" não é muito cinematográfico, não?
Melo -
Acho que é o menos de todos. Eu quis fugir disso. O estilo é a morte do escritor. A partir do momento que você sente que há um perigo de estilo, há também um perigo artístico.

Folha - Quando lançou "Matador", você disse que para a verdade parecer verossímil adicionou muita mentira. Até que ponto "Valsa Negra" também "elogia a mentira"?
Melo -
A diferença fundamental entre a ficção e a realidade é que não exigimos da realidade nenhuma coerência. Mas como leitores pedimos coerência total na ficção. Faço muita pesquisa para não falar bobagem. Mas a pesquisa é perigosa também, deve ser usada homeopaticamente.



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