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São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2003

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Dentro da programação de hoje, autor gaúcho fala sobre a história da cidade

Vacas magras foram ouro para Parati

Tuca Vieira/Folha Imagem
A Matriz de Nossa Senhora dos Remédios, na praça da Matriz de Parati; cidade sedia festival internacional de literatura até hoje


EDUARDO BUENO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Ouro ! Ouro!", gritariam histéricos os operadores da Bolsa de Valores, se a Parati dos séculos 17 e 18 fosse palco de um dos enervantes pregões que aparecem nos telejornais de hoje, e depois "Café! Café!"; e entre um e outro, "Diamantes!"; e, desde sempre, "Escravos! Escravos!" (nativos ou importados).
"Piratas!" também era grito que ecoaria com frequência, só que, nesse caso, não para anunciar a chegada de mais uma mercadoria, mas o desembarque dos que estavam dispostos a simplificar as complexidades do mercado e eliminar (literalmente) os intermediários.
Embora desde o início tenha sido ponto de escalas e de encontros (e de encantos), Parati felizmente sempre foi mais que mero porto de escambo. A cidade, com certeza, teve muitos negócios e muitos negociantes. Só que viu girar tantas vezes a roda da fortuna, ora Caminho de Serra Acima, ora Caminho da Serra Abaixo, que adquiriu conhecimento da noção budista da impermanência. Nesse mundo fugaz, tudo é passageiro e nem tudo o que reluz é ouro.
A Parati dos caras-pálidas surgiu, todo mundo sabe, no aluvião do ciclo do ouro das Gerais -durante a Colônia. O "fulvo metal", arrancado das entranhas da terra, descia a serra no lombo das mulas e, da pedra do porto de Parati, seguia para fazer o fausto das nações além-mar.
Mas a febre do ouro -a "auri sacra flames"- durou o que tinha de durar e só deixou sequelas e lembranças nos tolos de cá e nos ricos de lá. Mais tarde, a modo de sobremesa, Parati ainda veria a eclosão do ciclo do café intoxicando os novos barões com outra miragem de lucro fácil.
A bebida, que dizia "dar espírito aos que não o tem", também passava pelo porto de Parati antes de saciar o vício de poetas franceses, caubóis americanos e banqueiros ingleses. Mas a amarga "semente do progresso", o "ouro verde" do Brasil, também logo deixou de vingar.
Por doce ironia, foram os períodos de vacas magras que levaram Parati a redescobrir sua real natureza. A estagnação e a decadência pós-ciclos do ouro e do café acabaram se revelando uma bênção para a cidade. Parati ficou congelada sob o sol dos trópicos, com seus casarões gotejando um suor de pedras carcomidas.
As ruelas de lajes silenciosas, estreitas como cicatrizes, não ecoavam mais o tropel das tropas. O caminho do ouro, o caminho dos tropeiros, o caminho sem marcas das águas, o caminho de ferro, o caminho de asfalto, o descaminho dos homens -todos deixaram Parati sentada à beira do caminho.
Foi como se a cidade relembrasse então sua vocação original: afinal, ali fora a estância de férias dos índios Guaianá, habitantes originais dos Campos de Piratininga (depois rebatizados de São Paulo), que desciam ao mar de Parati pela fama de suas águas milagrosas e seus cardumes de piratis (espécie de tainha).
Transformada em monumento histórico em 1945 e tombada como monumento nacional em 1966, Parati se redescobriu, longe do comércio e dos comerciantes. Tudo bem que outros problemas começaram tão logo um novo caminho, dessa vez a rodovia Rio-Santos, trouxe novas levas de forasteiros ao vilarejo.
Mas então a Parati dos quintos, dos cantos e dos ranchos já havia se tornado a Parati de segunda à sexta. A Parati dos traços requintados e dos textos finos de Tom e Thereza Maia. A Parati do paciente garimpo arqueólogico de Marcos Caetano Ribas, o "redescobridor" do Caminho do Ouro. A Parati dos sonhos coloridos dos hippies pré-BR.
E agora, após tantos altos e tantos baixos, Parati estava pronta para se tornar um paraíso de letras, e elas não são de câmbio! Saudemos, pois, o advento da Parati que não é VIP: é FLIP. A Parati de Liz Calder e de Flávio Pinheiro é também a Parati de Hobsbawm, de DeLillo, de Julian Barnes e de nós outros. Sim, Parati para nós, Parati para todos. Parati para frente. Parati para sempre.


Eduardo Bueno, 44, é jornalista e escritor, autor de "A Viagem do Descobrimento", entre outros livros


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