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Compositor viaja no tempo e desbrava capital húngara
JOÃO WAINER
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM BUDAPESTE
O vôo 879 da companhia húngara Malev Airlines deixou Zurique sem atraso naquele sábado de
junho em que o Brasil venceu a
Alemanha por 3 a 1 na Copa das
Confederações.
Na segunda fileira um passageiro lia atentamente o jornal húngaro "Szép Szó" e preenchia as palavras cruzadas impressas no caderno cultural. Com dificuldade,
consultava a cada instante um livro verde de capa dura sobre a
mesinha da aeronave. O passageiro era Chico Buarque de Hollanda, prestes a aterrissar pela primeira vez em Budapeste, cidade
que, apesar de não conhecer, inspirou-o e deu nome a seu último
romance, publicado em 2003. O
livro ao lado do jornal era um dicionário húngaro-inglês. Começava ali a viagem do autor -assim como seu protagonista, o escritor José Costa-, não apenas
por Budapeste mas também pela
língua húngara que, segundo seu
livro, de tão complexa é a única
que o Diabo respeita.
O primeiro contato com o povo
húngaro deu-se ainda no avião. A
aeromoça da Malev, linda, loura e
de nome Érika, servia os passageiros. Chico pediu: "Et wiz kera"
("Uma água, por favor"). "Mineral water?", respondeu a aeromoça, em inglês, com sotaque carregado nos "erres", típico do Leste
Europeu, para a decepção do
compositor empenhadíssimo no
aprendizado do húngaro.
Evoluindo lentamente nas palavras cruzadas, Chico demonstrava ansiedade que ficava mais clara
à medida que o vôo chegava ao
fim. "É estranho. Fiquei muito
tempo, dois anos, me imaginando
nesta cidade. Quero ver quando
pisar lá o que vai acontecer."
Em sua chegada à cidade, jantou um prato típico húngaro, despediu-se e saiu sozinho, caminhando rápido com seu sotaque
paulista nos pés pela margem do
rio Danúbio. "Quando estou andando pela cidade, parece que eu
estou dentro do livro", confessou
o escritor.
Chico Buarque desbravou Budapeste. Uma de suas descobertas
foi a estátua do escritor anônimo
no Városliget. A estátua representa um historiador que trabalhava
para o rei Bélla 3º no final do século 17 e prestava-lhe anonimamente serviços literários. Foi ele quem
escreveu "Gesta Hungarorum"
("História dos Húngaros"), um
dos mais importantes livros de
história da Hungria. Sua identidade jamais foi descoberta.
No romance "Budapeste", o
protagonista José Costa é um
ghost-writer que escreve textos
para que outros assinem. No final
da viagem, Chico afirmou que ao
livro não cabem modificações em
edições futuras, mas a estátua seria a única que ele poderia acrescentar após conhecer a Budapeste
real.
"Chegando aqui, pude confirmar que algumas coisas que eu tinha escrito com base em pesquisas estavam erradas, como o cigarro da marca Fecske que não
existe há mais de 20 anos, ou o
jornal onde meu protagonista publica um anúncio num domingo e
que não sai aos domingos. Por
outro lado, coisas que eu tinha inventado são reais, como a rua
Toth, em que Kriska morava, que
realmente existe. Fui até lá e descobri que há uma estação de metrô ao lado, exatamente como
descrito no livro. A intuição também funciona muito", afirmou.
Na periferia de Budapeste houve um torneio de futebol entre o
time da embaixada brasileira, reforçado por Chico e seu empresário, Vinicius França, contra equipes formadas por ex-jogadores
húngaros, alguns com passagem
pela seleção local. Os brasileiros
jogaram duas vezes e venceram
ambas. Chico não fez gol, mas jogou bem e deu boas assistências
aos gols de Vinicius.
"Escrever sobre uma cidade que
você não conhece é um pouco como escrever sobre outros tempos.
Quanta literatura já não foi escrita
sobre tempos remotos, ficção
científica e tal. Chegar aqui a Budapeste é como se eu pudesse chegar ao Brasil da invasão holandesa
da peça "Calabar", que escrevi com
o Ruy Guerra, que se passa em
1631. É claro que qualquer peça ou
romance histórico é feito com base em pesquisas, mas deve ter
muito desacerto. Chegar a Budapeste é como se eu pudesse viajar
no tempo."
"Ao lado da estranheza inicial,
me senti como se de fato conhecesse Budapeste. Me senti à vontade aqui", disse Chico Buarque,
momentos antes de despedir-se e
embarcar para Paris, local onde
ele afirma que encontra a paz necessária para trabalhar. Chico finaliza, a partir de agora, as composições de seu próximo disco,
com previsão de lançamento no
final deste ano.
O repórter-fotográfico João Wainer é
diretor de fotografia da série "Chico
Buarque".
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