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CONTARDO CALLIGARIS
Estamira e "Transamérica"
Odiamos o outro não por ele ser diferente, mas para ignorar que ele é parecido conosco
DURANTE QUATRO anos, Marcos Prado escutou Estamira,
uma senhora de mais de 60
anos que vivia entre seu barraco (habitado e cuidado com a dignidade
devida a uma casa) e seu lugar de trabalho (um aterro de lixo, onde ela
passava dias e noites a fio).
Dessa experiência, Prado fez um
filme, "Estamira", que é um extraordinário documento sobre a humanidade da loucura. Ele nos apresenta o
território de Estamira (o mundo físico pelo qual ela anda), suas relações (de família e de amizade) e seu
mundo íntimo, ou seja, o sentido
que ela atribui ao seu ser.
Alguns psicólogos reconhecerão
nessa tríade (mundo físico, relações
e intimidade) as três categorias da
psicologia existencial de Ludwig
Binswanger. Pensei em Binswanger
e na generosidade de sua clínica e de
seu pensamento quando, comentando o filme, uma amiga e colega
me disse: "Estamira é delirante, mas
suas palavras, poéticas, fantásticas
ou brutais, são coisas que ela diz não
porque é psicótica, mas porque é ela,
Estamira".
Que falemos lugares-comuns (como a maioria dos neuróticos) ou expressemos curiosas visões do mundo (como quem parece delirar), de
qualquer forma, não há quadro clínico que possa (e deva) anular a unicidade de nossa presença no mundo,
a dignidade do que se chamava, tempo atrás, nossa "pessoa".
Marcos Prado permitiu que Estamira lhe (e nos) falasse porque quis e
soube escutá-la como se escuta, em
princípio, um semelhante. Com isso, o filme é absolutamente imperdível para quem, "psi" ou não, esteja
disposto a se aproximar da loucura,
ou melhor, a descobrir que o "louco"
é estranhamente próximo da gente.
A cosmologia de Estamira (o além,
o além do além, o mundo abarrotado
que transborda) e sua religião (uma
briga constante com Deus e com o
Trocadilho, face diabólica e maldita
do mesmo) não são menos verossímeis do que muitas de nossas crenças. A diferença é que nossas crenças
são delírios que tiveram sucesso e
ganharam credibilidade por serem
compartilhados pela maioria.
Estamira (esse talvez seja o drama
fundamental da loucura) deve inventar sozinha os meios de dar sentido à sua presença no mundo. Ela
consegue essa façanha atribuindo-se o destino de ter de transmitir o
que ela vê.
O Trocadilho, ao persegui-la, lhe
deu uma missão, que é (como esperar outra coisa de um deus com esse
nome?) um jogo de palavras: Estamira é esta mira, o olhar que tudo vê
e tudo deve revelar.
Missão cumprida, graças a Marcos Prado.
Corolário: quem não acredita na
reforma psiquiátrica veja o filme e se
pergunte: será que nossa sociedade
pode tolerar a loucura só na margem
extrema (o além do além) do lixão
ou na clausura dos hospícios?
Quero mencionar um outro filme,
antes que saia de cartaz. "Transamérica", de Duncan Tucker, é uma ficção e, à primeira vista, pouco tem a
ver com "Estamira". Salvo que ambos os filmes nos forçam a descobrir
destinos e jeitos de estar no mundo
que são, no melhor dos casos, objetos de nossos olhares compassivos
ou, mais freqüentemente, de exclusão, zombaria e ódio.
O ódio, nesses casos, é o índice de
uma cegueira proposital: odiamos o
outro não por ele ser diferente de
nós, mas para poder ignorar que ele
é parecido conosco.
O herói (ou a heroína) de "Transamérica" é um transexual que, na hora em que obtém, enfim, o direito de
ser operado e mudar de gênero, descobre que é pai de um filho adolescente. Difícil assistir ao filme sem
entender de vez o seguinte: o drama
de quem vive num corpo que lhe parece estrangeiro (por ser de um gênero no qual ele não se reconhece)
tem pouco a ver com os avatares do
desejo sexual. É um drama de identidade.
Algumas leituras para a fila do cinema. A Martins Fontes publica os
seminários de Michel Foucault: no
ano passado, "Os Anormais" e, neste
ano, "O Poder Psiquiátrico". O Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos acaba de
publicar "Política, Direitos, Violência e Homossexualidade, Pesquisa
na Nona Parada do Orgulho GLBT
São Paulo 2005", de Carrara, Ramos, Simões e Facchini. A pesquisa
confirma que, em matéria de discriminação, o transexual, que discorda
de seu próprio gênero, é a vítima
preferida.
É difícil abandonar o conforto da
crença de que nós somos os "normais". Mais difícil ainda é admitir
que a anatomia de nosso corpo possa não bastar para nos dar a certeza
de que somos homem ou mulher.
ccalligari@uol.com.br
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