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CONTARDO CALLIGARIS
Passivo cultural
Nos EUA, um seguro de saúde para todos é uma mudança no que define o país e sua cultura
O PRESIDENTE dos EUA, Barack Obama, tenta cumprir
uma das promessas de sua
campanha: uma reforma pela qual
todos os cidadãos seriam protegidos
por um seguro-saúde básico.
Atualmente, o sistema de saúde
pública dos EUA protege as crianças, os idosos e os indigentes, mas
deixa de molho uma ampla faixa da
classe média, que não é indigente,
mas não consegue pagar um seguro
particular. Mais de 40 milhões de cidadãos, se eles adoecerem gravemente, terão que vender seus bens e
se endividar até alcançar a miséria
que lhes dará, enfim, direito à assistência gratuita.
Canadenses, europeus, brasileiros
etc. estranham que os EUA não disponham "ainda" de algo parecido
com, sei lá, a "Sécurité Sociale" francesa ou mesmo o nosso Sistema
Único de Saúde: "Como é que pode?
A nação mais rica do mundo!".
Culpar a mesquinhez dos cidadãos mais abastados fica ridículo no
caso de um país em que a generosidade é uma regra instituída, a ponto
que qualquer caridade implica um
desconto direto no imposto de renda das pessoas físicas. Será, então,
que o liberalismo norte-americano
não entende que o custo de um sistema de saúde é compensado pelo
que se ganha em produtividade (trabalhadores atendidos prontamente
quando estão doentes, mais saudáveis graças à prevenção, menos angustiados pela pneumonia da mãe
etc.)? Duvido.
Resta que Bill Clinton não conseguiu promover um plano de seguro-saúde para todos os cidadãos, e, agora, Barack Obama encontra uma
oposição que compromete sua popularidade e divide o país.
O curioso é que, conversando por
telefone com amigos e conhecidos
(sobretudo os que não votaram em
Obama), é difícil encontrar, nos
EUA, alguém que não concorde com
o princípio de seguro-saúde para todos. Mesmo assim, muitos resistem.
Aparentemente, a metade dos cidadãos dos EUA, perguntados se
eles querem um seguro-saúde para
todos, respondem: "Claro, quem
não gostaria?", mas acrescentam:
"Não quero que o Estado escolha o
médico que vai me tratar" ou "Não
quero subvencionar os abortos de
adolescentes lascivas e inconsequentes" ou, ainda e sobretudo, "seguro-saúde universal não é coisa de
país socialista ou comunista?".
Ora, o plano proposto preserva a
livre escolha dos médicos pelos pacientes (sem contar que, nos EUA, a
maioria usa convênios que já limitam a dita escolha). O plano tampouco muda o funcionamento das
clínicas que praticam abortos. Resta
o espantalho do "socialismo": o que
ele significa, 20 anos depois do fim
da guerra fria? Certo, na boca dos
comentadores da oposição, ele é um
pretexto político para reanimar as
tropas, mas o que faz sua força?
Pois é, o famoso homem da rua,
consultado por mim pessoal e telefonicamente, explicou-me que, no
"socialismo", o Estado se mete nos
negócios da gente e acaba com a liberdade dos cidadãos -o que, aliás,
não é de todo inexato. Mas eu insisti:
"OK, entendo que um seguro-saúde
para todos seria obrigatório, e você
não gosta de nada obrigatório; mas
será que queremos, para nós e para
os outros, também a liberdade de ficar no desamparo nos casos de
doença?".
Pois bem, meus interlocutores
responderam que eu tinha razão,
mas, no fundo, a liberdade, como se
expressou textualmente um deles, é
também "a liberdade de se foder".
Entendi assim que talvez a mudança proposta por Obama seja
muito mais do que uma mudança de
gestão da saúde; talvez se trate de
uma mudança no que define, há séculos, os EUA e sua cultura.
Não fica claro? Pois é, imagine
que, na formação da cultura brasileira, por uma reviravolta da História e
das histórias contadas pela literatura nacional, o traço decisivo não tenha sido, por exemplo, a cobiça do
colonizador, mas sim o espírito do
bandeirante.
Diante da proposta de um seguro-saúde universal, o colonizador cobiçoso poderia responder "Nada disso
(os escravos que se virem)" ou, ao
contrário, "Boa ideia, vai melhorar o
rendimento dos peões".
Mas como reagiria o Anhanguera,
sobretudo se a sua procura do ouro
tivesse se tornado uma épica aventurosa que define o espírito da nação? Suspeito que, como meu interlocutor estadunidense, ele recusaria, explicando que a vida do indivíduo é um risco absoluto, e que esse é
o sentido, o charme e o interesse
da aventura.
Em suma, às vezes, os próprios
traços que fazem ou fizeram a grandeza de uma cultura se tornam, para
ela, um passivo.
ccalligari@uol.com.br
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