São Paulo, quarta-feira, 03 de outubro de 2007

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MARCELO COELHO

Pavores num bercinho cor-de-rosa

Amadurecer está fora de moda: birrentos, imediatistas, vamos nos transformando em bebês

BRINCAR COM bonecas, bichinhos de pelúcia e dinossauros de borracha está no programa de qualquer infância normal, ainda que bonecas tenham, por vezes, seus aspectos aflitivos.
Penso naquelas antigas de plástico duro, que logo ficavam sem cabeça e iam parar nas mãos de crianças pedindo esmola na rua, de nariz escorrendo... Ou naquelas muito bonitas e caras, de porcelana, que terminavam com o olho vazado.
Bem sinistra, sem dúvida, é a visão de uma coleção de bonecas antigas, de olhos estatelados, sentadinhas uma ao lado da outra, naquelas cerimônias de batizado que as meninas de outros tempos organizavam nos dias de chuva.
Mais um pouco de terror e chego àquele episódio do filme "Na Solidão da Noite", feito na Inglaterra, em 1945, no qual Alberto Cavalcanti conta a história de um ventríloquo cujo boneco ganha vida própria. Um dos primeiros sinais de sua autonomia é a mordida que ele dá numa das mãos do manipulador. Daí para a frente o medo se intensifica, porque o espectador não sabe se tudo é resultado de narcisismo paranóico e homossexualidade reprimida do personagem ou se há mesmo algo de sobrenatural em curso.
Mas acho que medo mesmo eu vou sentir se visitar uma exposição recém-inaugurada no shopping Plaza Sul, que introduz o público paulistano à arte das bonecas "reborn".
A coisa faz um sucesso tremendo nos Estados Unidos e na Inglaterra.
São bonecos que imitam com perfeição incomparável, digna de Madame Tussaud ou do melhor taxidermista, bebês recém-nascidos. Com cara amassada e tudo; ou, se você preferir, aquelas criancinhas maiores, já de olhos abertos, agora imóveis, entretanto, numa infância congelada, encarando fixamente o seu proprietário.
O artista plástico Ron Mueck, que passou a ficar conhecido depois da mostra "Sensation", nos anos 90, faz coisa parecida, com propósitos inquietantes. Reproduz corpos humanos adultos, nus, jogando com variações de tamanho. Às vezes é uma mulher gorda que se agiganta na sala de exposição; ou então o cadáver de um velho (Mueck retratou seu próprio pai) que aparece deitado na sala do museu, uns 10% ou 20% menor do que o corpo original.
A inquietação parece ser ignorada nesse movimento de consumo, em que o hiper-realismo está a serviço do "fofinho", para quem não se arrepiar diante da coisa.
Eu, pelo menos, fico arrepiado. A perfeição técnica dos bonecos, como nas estátuas de cera, não me provoca aquele espanto de quem se aproxima e diz: "Parece que estão vivos!".
Mas sim o contrário: "Parece que estão mortos". Talvez seja morbidez de minha parte. Não é preciso ir tão longe, contudo, para notar um outro aspecto assustador desses bonecos.
Qualquer desenho, brinquedo, quadro, peça de teatro ou filme de antigamente admitia uma distância entre o que é diversão, fantasia, simbolização, e o que é o mundo real.
O desenvolvimento técnico (basta pensar na qualidade dos videogames ou dos efeitos especiais do cinema hoje em dia) possibilita a reprodução, cada vez mais intensa e precisa, da realidade. O que antes era imaginável, fantasiável, assume presença holográfica, ocupando até o espaço que tínhamos para respirar.
E isso significa, sobretudo, um poder de nos interpelar: a boneca "reborn" nos olha com uma crueldade gélida, indiferente e indestrutível, dizendo-nos: "Eu sou o Real". E quem seria louco de responder a esse desafio e interagir com o Real?
Pior que isso, trata-se de um Real parado no tempo: o bebê não cresce, não muda, está presentificado para sempre, enquanto nós, por enquanto, mudamos.
A menos que se recorra à plástica e ao botox. Muitas pessoas já são, na verdade, resultado de uma tecnologia "reborn", de uma taxidermia em vida.
Para completar o caso, sou informado de que o cliente interessado pode mandar fazer um boneco "reborn" de si mesmo, reproduzindo as feições da época em que era um bebê. Já nem se trata, acho, de narcisismo. Trata-se de uma fantasia de auto-infantilização que, no fundo, está impregnada em todos nós.
Amadurecer pode ser inevitável, mas está sem dúvida fora de moda: birrentos, imediatistas, influenciáveis, crédulos, maus perdedores, vamos a passos rápidos nos transformando em bebês. A ponto de já não acreditarmos em metáforas: é preciso o boneco mesmo, à venda em lojas especializadas, para completar de uma vez esse processo.


coelhofsp@uol.com.br

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