São Paulo, sexta-feira, 03 de outubro de 2008

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CARLOS HEITOR CONY

Diário de bordo


Amanhã, tentarei continuar este registro da viagem, segmento inútil de uma vida inútil

24/12/1995 , véspera de Natal, a bordo do Royal Viking Sun, a caminho de Tortola, ilhas Virgens, Caribe. Rotina de cruzeiro, sol escasso, não entrei no clima de outras viagens. Comecei a ler, agora à tarde, uma biografia de Marco Aurélio, de Pierre Grimal, a introdução é muito boa, assinalei alguns trechos para posterior serventia.
Embarcamos ontem, em Fort Lauderdale. Foi bonito ver o porto com cinco navios gigantescos, fosforescentes, parecem feitos em série, todos têm suas diferenças embora sejam genericamente iguais. Saímos à mesma hora, seis da tarde, já com as luzes acesas. Formamos uma procissão ridícula, um atrás do outro, "unus post alium", como na liturgia das procissões eclesiásticas.
Daqui da cabine vejo, um pouco à distância, um outro navio, da mesma forma que, atrás, um outro navio nos vê. Para piorar, os itinerários são os mesmos, mesmos os horários, as comidas, os eventos de bordo e os passageiros.
O que faço no meio disso tudo? Oficialmente, descanso de ano e meio de trabalho, tirei férias em julho/agosto do ano passado, fiz um cruzeiro no Mediterrâneo (no Costa Romântica) e uma espécie de retiro espiritual em Verona.
Depois disso enfrentei uma tourada, com piques de impacto, ora para lá, ora para cá: Mila, em maio, a maior perda de quem quase nada ganhou. A doença de Zélia, em fase terminal. Um problema na vista esquerda que me obriga a pingar lágrimas artificiais ("hipo tears") para umedecer a retina. Esse é o lado ruim da situação.
Apesar disso, continuo achando que sou apenas um embromador, ao contrário de Fernando Pessoa que era apenas fingidor. Uma coisa é fingir. Outra é embromar.
Bem, essas coisas, boas e más, estão agora distantes, a noite caiu sobre o Caribe, o pessoal lá em cima está enfeitando os salões com papais Noel e estrelas de Belém, o Royal Viking Sun vai para Tortola, lugar a que nunca desejei ir, nem me considero indo realmente. Se um vidente me profetizasse essa viagem a Tortola, eu nem ficaria irritado. Ficaria descrente, como se me profetizasse a sorte grande ou um casamento com a rainha da Inglaterra.
O melhor que faço, na circunstância, é me vestir para o jantar. Amanhã, tentarei continuar este registro da viagem, segmento inútil de uma vida na maioria das vezes inútil. Vamos ver no que vai dar.
25/12/1995, uma chuva rala caindo no mar é um pleonasmo. Os organizadores desses cruzeiros prometem sol, dias deslumbrantes à beira das piscinas, circundada de fêmeas igualmente deslumbrantes. Não é bem assim.
O navio parece que ainda não acordou nesta manhã de Natal. Está silencioso, navega em boa velocidade sob o céu baixo e -como dizem os baianos- plúmbeo. Está decorado com exagero e o mau gosto típico desses armadores, cujo público-alvo é o norte-americano médio, aposentado, com algumas ações na bolsa e quase nada na cabeça antenada para o fim. Enquanto o fim não chega, tudo é lucro.
Ontem, naquilo que o pessoal de bordo chama de "Christmas Eve", houve um momento interessante. Sentei-me à porta do restaurante, esperava que terminasse a recepção que o comandante estava dando no salão de cima. Nunca fui a essas recepções em cruzeiros anteriores e não iria a essa que misturou boas-vindas a bordo e votos de feliz Natal.
Terminada a reunião, o pessoal começou a descer em direção ao restaurante e aí assisti a um desfile complicado e divertido. Nem as escolas de samba do Rio, em toda a sua glória, nem Fellini nas alucinações mais radicais poderiam promover o espetáculo que curti, em assombrado silêncio.
Em primeiro lugar, a idade. Homens e mulheres com gosto de tumba, rostos macerados, pernas trêmulas, bengalas de vários feitios e materiais, desciam a feérica escada do salão, uma escada de filme musical da Metro dos anos 50, com degraus iluminados e coloridos. A variedade tinha um eixo comum: a seriedade de cada um desses figurantes, certos de que estavam cumprindo uma tarefa ridícula e inútil, mas preferível à alternativa. Para a maioria deles, esse é o último Natal. Exalavam, todos, um bafio, um cheiro de túmulo, cadáveres antecipados. E eu, de certo modo, no meio deles.


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