NINA HORTA

Quem é que pensa que o principal da comida são as receitas? Nãããão. Comida é também para deixar o olho parado, pensando.
Fui a alguns filmes da Mostra de Cinema, assim no chute, tinha comida no título, lá ia eu, deixando os nacionais de lado, mais fáceis de assistir depois.
O primeiro foi o documentário "Sabores de Bowery Dish", decepcionante. Mostra um bairro passando por um processo de "gentrification", e o bairro se modifica porque é comprado por gente mais rica do que os antigos proprietários. Foi o que aconteceu em Nova York, com o bairro de Bowery, lugar de bêbados, drogados, doentes, que aos poucos se transforma ao ser invadido por restaurantes finos e galpões reformados em lofts milionários.
Depois, "Dumplings", um filme chinês de diretor e atores conhecidos. Este, muito bom, muito louco, transgressor, te deixa em suspense do começo ao fim, é uma fábula cômico-surrealista de terror, e vale a pena só para ver a destreza da atriz principal fazendo as trouxinhas transparentes de farinha de trigo e recheando-as com... restos de fetos humanos abortados. Foi a idéia que a ex-ginecologista sexy e safada teve para remoçar as pessoas. É seu trabalho. Conseguir o material a duras penas, rechear as trouxinhas com ele, cozinhá-lo num caldo, numa cozinha mínima, provar pedacinhos (que a fazem moça também) e torná-lo apetitoso para a artista ainda bela que não quer ficar velha e perder o marido rico.
No começo o canibalismo é exercido com um certo asco pela cliente, mas não leva tempo e já está mastigando os ossinhos, croc, croc, ao pensar nos resultados.
Uma sátira às gerações que perseguem a todo custo a juventude. Horripilantemente bom.
Quando acabou a sessão, um bando de mulheres teve um ataque histérico de riso que se espalhou pela sala toda do cinema, como numa catarse.
O terceiro filme chama-se "Tapas" e se passa no bairro de periferia Hospitalet de Llobregat, em Barcelona. São cinco histórias entrelaçadas, cinco tapas, tendo como pano de fundo um verão de rachar. A comida entra naturalmente, porque, na Espanha, comer é viver.
O dono do bar (que atazana tanto a mulher-cozinheira que a faz fugir), o substituto chinês, um pequeno, jovem, ótimo chef (que até assiste às escondidas uma aula do Ferran Adrià na TV compartilhada pelos espectadores), a velha que sustenta o marido doente através de métodos nada convencionais, as fofocas de rua, inconsistentes, assim é se lhe parece... tapas, pequenos tapas inocentes, que de inocentes não têm nada. Bastante bom.
E o último da série, "Adam's Apples", uau, é no que dá ir ao cinema pelo título. O pomo de Adão. A maçã de Adão. Dinamarquês. Foi como um soco no estômago. Não se fazem mais comédias como antigamente. Você ri e fica sem ar ao mesmo tempo. Antes de ir ao cinema pegue o Livro de Jó e faça uma leitura profunda, pois o ponto crucial é este. Quem encheu as maçãs de corvos e vermes, quem matou a mulher do padre, quem fez seu filho nascer deficiente, por que o forno não funciona, por que o reverendo tem um câncer do tamanho de uma bola de futebol na cabeça, quem deixou Hitler pintar e bordar? Deus ou o Demônio?
São as duas teorias que lutam entre si numa igrejinha rural onde um padre recebe presos para o ajudarem. O padre é o Bem tresloucado, os homens são o Mal personificado. Um neonazista chega nesse lugar (que de tão bonito só faz pensar em Deus), e o padre lhe pergunta o que quer fazer como projeto de vida no pouco tempo que vai ficar lá. Desdenhoso e irônico, ele responde que quer assar uma torta de maçã com as maçãs da árvore frondosa, orgulho da paróquia. O padre acredita e...
O filme é muito bom, uma sátira de novelas de redenção, violenta e cômica ao mesmo tempo, e quando se pensa que lá vem um clichê, com santinho e tudo, vem o tiro na cara. Perdoem-me, não aconselharia como filme culinário, mas que tem uma torta de maçã, tem. Pequenininha e emborrachada, mas tem.