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CONTARDO CALLIGARIS
A armadilha da corrupção
No fim de semana passado,
estive no encontro do Instituto DNA Brasil, em Campos do
Jordão. O evento reunia pessoas
representativas de várias áreas,
para que, durante três dias, debatessem sobre os meios para tornar
o país "justo e habitável com dignidade".
Um dia inteiro foi dedicado ao
tema da corrupção. A imprensa
já relatou as sugestões às quais a
gente chegou, consensualmente
ou quase: desde o financiamento
público das campanhas até o voto
distrital misto ou a possibilidade
de revogar os mandatos antes do
seu fim.
No sábado, bem na hora em que
começava a discussão sobre a corrupção, chegou a revista "Veja",
com a reportagem de capa sobre o
suposto financiamento cubano
na campanha do PT de 2002.
A pior conseqüência desta série
interminável de denúncias e apurações é a aparente "confirmação" de um lugar-comum desastroso: "Eles são todos corruptos"
("eles" são, no caso, os políticos).
Não me importa agora decidir
se "eles" são mesmo todos corruptos. Tampouco penso que a imprensa tenha de esconder o que
ela descobre só para não "comprovar" que "eles são todos corruptos". Mas o fato é que esse lugar-comum é uma armadilha para nossa capacidade de agir como
cidadãos.
Aparte: a reunião do DNA não
caiu na armadilha da indignação
diante da corrupção generalizada, e esse não foi o menor de seus
méritos. Mas a exceção não derruba a regra que vou expor.
Qual é o efeito em nós do "eles
são todos corruptos"?
Várias vezes, nos últimos meses,
fui entrevistado sobre o estado de
espírito dos brasileiros nas circunstâncias atuais. A pergunta,
quase sempre, sugeria a resposta
esperada: "Quais são os efeitos em
seus pacientes da decepção e da
depressão nacionais?". Em geral,
respondi, preguiçosamente, que,
de fato, os acontecimentos são
tristes e deprimentes.
Mas essa resposta óbvia (para a
qual não seria preciso de um especialista) é falsa.
Em regra, o narcisismo da gente
funciona assim: quanto maior a
imperfeição do mundo, quanto
maior a decepção que nos é imposta pela conduta dos outros,
tanto maior é nossa exaltação
narcisista. No caso, atrás das
queixas, a constatação de que
nossos representantes e governantes seriam todos corruptos está longe de ser depressiva.
É lógico: acreditar que os outros
sejam todos deficientes morais é o
melhor jeito de afirmar que nós,
ao contrário e em comparação,
somos gigantes da moralidade.
Contemplar o mundo como um
vasto teatro de defeitos equivale a
erigir um monumento à nossa suposta integridade, graças ao seguinte raciocínio implícito (capenga, mas gratificante): se podemos constatar que todos os outros
são corruptos, é porque somos os
ÚNICOS limpos. De repente, confirmar nossa grandiosa unicidade
se torna nossa ocupação principal. Com isso, é paralisada nossa
capacidade de transformar o
mundo.
A psicologia do self (esta foi, ao
meu ver, sua maior contribuição
à psicanálise) mostrou o seguinte:
temos acesso ao mundo e a uma
ação minimamente eficaz para
transformá-lo quando paramos
de contemplar sua imperfeição
(celebrando a unicidade de nossa
diferença) e enxergamos na realidade algo (diferente de nós) que
possamos idealizar.
Por exemplo, se vivo numa cidade em que acho horríveis todas
as habitações salvo a minha, dedico-me integralmente a caiar de
branco a fachada de minha casa,
na qual, aliás, fecho-me como
num sepulcro. Mas se reconheço
que, na cidade, há outras moradias que são mais bonitas do que
a minha, há chances que um dia
eu queira sair de pincel e vassoura na mão para pintar de branco
as fachadas da cidade inteira e
para lavar as calçadas.
O que vale para as casas vale
para os outros. Se acho que todos
os outros são imperfeitos, considero-me como a única exceção, torno-me meu próprio ideal, ou seja,
só idealizo (e amo) a mim mesmo. É a razão pela qual, em geral,
um terapeuta se abstém de julgar
moralmente seus pacientes: quem
julga está quase sempre mais
preocupado em comemorar sua
própria integridade do que em
entender o outro.
Em suma, as denúncias que assolam nosso cotidiano podem dar
lugar a uma vontade de transformar o mundo só se nossa indignação não afetar o mundo inteiro. "Eles são TODOS corruptos" é
um pensamento que serve apenas
para "confirmar" a "integridade"
de quem se indigna.
O lugar-comum sobre a corrupção generalizada não é uma armadilha para os corruptos: eles
continuam iguais e livres, enquanto, fechados em casa, festejamos nossa esplendorosa retidão.
O dito lugar-comum é uma armadilha que amarra e imobiliza
os mesmos que denunciam a imperfeição do mundo inteiro.
Nota . Alguns conseguem
contemplar e lamentar a
imperfeição do mundo sem se gabar de sua própria perfeição. O
melhor exemplo (e o mais raro)
são os santos. A santidade não
consiste só em reconhecer suas
próprias falhas ou em perdoar as
falhas dos outros. O santo, além
disso, enxerga a imperfeição do
mundo, mas continua encontrando razões para amá-lo, ou seja,
continua encontrando seus ideais
lá fora, na banalidade imperfeita
dos outros.
@ - ccalligari@uol.com.br
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