São Paulo, segunda-feira, 03 de dezembro de 2007

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NELSON ASCHER

Brincando com fogo


Instaurou-se um campeonato da queixa; todos querem ser vítimas, indenizados

SE HÁ uma maneira segura de tornar irresolúvel um conflito qualquer, ela consiste em permitir que seus aspectos étnicos e/ou religiosos assumam papel dominante. Independentemente de quem tem razão no conflito do Oriente Médio, é graças a essa sua característica que ele jamais será resolvido em conferências de paz ou através de diplomacia e negociações. Desejar uma solução pacífica é justo e humano, mas ingênuo.
Não bastasse isso, há no mundo inúmeros problemas de ordem territorial, nacional, econômica etc., que, ainda resolúveis por meio do pragmatismo, serão em breve tão refratários a este como o da Terra Santa. E, pior, há não-problemas que o apego dos adeptos do multiculturalismo aos pseudo-direitos coletivos em detrimento dos autênticos, os individuais, promete converter em conflagrações futuras.
Embora, muito mais do que dessa quimera, a luta de classes, a história humana tenha sido a crônica de embates de vários grupos (cuja identidade, para eles eterna e imutável, era dada por sua origem real ou mítica, por sua língua e fé), poucos cidadãos do Ocidente contemporâneo têm noção clara de quão extrema sua virulência chega a ser. Durante o último meio século, esses cidadãos viveram numa redoma de exceção que, em seu imaginário, metamorfoseou-se na regra universal.
Com a intenção de ilustrar tamanha desmemória, H. M. Enzensberger começa um de seus ensaios descrevendo cidades arrasadas, gente faminta, criminalidade de todo tipo ao redor e pergunta "África, América Central?" para responder: "Não, Nápoles, 1943, Berlim, 1945". Com as pontes reerguidas, os edifícios públicos reparados e todo o resto devidamente modernizado, os europeus ocidentais poderiam concluir o óbvio, a saber, que tiveram de chegar ao fundo do poço antes de optar pela racionalidade. Em vez disso, eles atribuem seu inusitado intervalo de paz e fartura resultante de tentativa e erro a algum tipo de sabedoria.
Dessa quase utopia realizada por acidente emergiu a idéia de que todos os povos do mundo são, a rigor, europeus ou americanos da classe média atual para os quais já não importa muito qual o país em que nasceram e que tampouco levam muito a sério as crenças de seus bisavós. Se algum conflito eclode no resto do planeta, este se deve, de acordo com tal ponto de vista, ou a algum mal-entendido, ou tem uma causa histórica capaz de ser elucidada mediante uma análise que revelará quem está certo, quem está errado.
Que grupos, nações, etnias e religiões, sobretudo os vizinhos, olhem uns aos outros com desconfiança, medo, inveja e rancor, isso, para nosso cidadão europeu ou americano de hoje, é simplesmente impensável. E, num ato estranho, atípico mesmo, de contrição, recordando às vezes que seus ancestrais eram similares, ele admite até culpá-los por coisas com as quais nada tinham a ver.
Os antigos navegantes sabiam que estar perdido em alto mar era grave, mas que o maior perigo era o de estar perdido sem sabê-lo, continuando a navegar como se estivessem na rota certa e, portanto, embrenhando-se cada vez mais no desconhecido. É exatamente assim que o Ocidente se comportou quando, com a crise do comunismo, a Iugoslávia começou a se dissolver.
No início, o que se passava por lá não era essencialmente distinto do que acontecera em outros países da região. O fato de a federação formar-se por várias nações, porém, ensejou que demagogos como Milosevic, percebendo a falência do discurso que vigorara, garantissem suas posições incentivando rivalidades interétnicas que estavam adormecidas ou nem mais existiam. Como suas maquinações não foram interrompidas logo, as que existiam ressurgiram e as inexistentes se materializaram. Em alguns anos, algo que não passava de manipulação demagógica transformou-se num conflito real que, apenas para ser interrompido, exigiu a intervenção militar externa.
Há grupos, etnias, nações em quantidade suficiente no planeta, e o equilíbrio é bem mais instável do que se imagina. Ressuscitar os que se mesclaram com outros ou, recorrendo a uma história enviesada, inventar novos não parece aconselhável. É, porém, o que se está fazendo no Brasil com os que descendem em parte de africanos e com os pobres, a pobreza tomada como uma categoria essencializada, perpétua, não como situação temporária, mutável. Acontece que se instaurou no mundo contemporâneo uma espécie de campeonato da queixa e da vitimização. Todos querem ser vítimas, receber indenizações. E aqui tampouco faltam oportunistas dispostos a brincar com o fogo.

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