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NELSON ASCHER
Brincando com fogo
Instaurou-se um campeonato da queixa; todos querem ser vítimas, indenizados
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SE HÁ uma maneira segura de
tornar irresolúvel um conflito
qualquer, ela consiste em permitir que seus aspectos étnicos e/ou
religiosos assumam papel dominante. Independentemente de quem
tem razão no conflito do Oriente
Médio, é graças a essa sua característica que ele jamais será resolvido
em conferências de paz ou através
de diplomacia e negociações. Desejar uma solução pacífica é justo e humano, mas ingênuo.
Não bastasse isso, há no mundo
inúmeros problemas de ordem territorial, nacional, econômica etc.,
que, ainda resolúveis por meio do
pragmatismo, serão em breve tão refratários a este como o da Terra Santa. E, pior, há não-problemas que o apego dos adeptos do multiculturalismo aos pseudo-direitos coletivos
em detrimento dos autênticos, os
individuais, promete converter em
conflagrações futuras.
Embora, muito mais do que dessa
quimera, a luta de classes, a história
humana tenha sido a crônica de embates de vários grupos (cuja identidade, para eles eterna e imutável,
era dada por sua origem real ou mítica, por sua língua e fé), poucos cidadãos do Ocidente contemporâneo
têm noção clara de quão extrema
sua virulência chega a ser. Durante o
último meio século, esses cidadãos
viveram numa redoma de exceção
que, em seu imaginário, metamorfoseou-se na regra universal.
Com a intenção de ilustrar tamanha desmemória, H. M. Enzensberger começa um de seus ensaios descrevendo cidades arrasadas, gente
faminta, criminalidade de todo tipo
ao redor e pergunta "África, América Central?" para responder: "Não,
Nápoles, 1943, Berlim, 1945". Com
as pontes reerguidas, os edifícios públicos reparados e todo o resto devidamente modernizado, os europeus
ocidentais poderiam concluir o óbvio, a saber, que tiveram de chegar
ao fundo do poço antes de optar pela
racionalidade. Em vez disso, eles
atribuem seu inusitado intervalo de
paz e fartura resultante de tentativa
e erro a algum tipo de sabedoria.
Dessa quase utopia realizada por
acidente emergiu a idéia de que todos os povos do mundo são, a rigor,
europeus ou americanos da classe
média atual para os quais já não importa muito qual o país em que nasceram e que tampouco levam muito
a sério as crenças de seus bisavós. Se
algum conflito eclode no resto do
planeta, este se deve, de acordo com
tal ponto de vista, ou a algum mal-entendido, ou tem uma causa histórica capaz de ser elucidada mediante
uma análise que revelará quem está
certo, quem está errado.
Que grupos, nações, etnias e religiões, sobretudo os vizinhos, olhem
uns aos outros com desconfiança,
medo, inveja e rancor, isso, para nosso cidadão europeu ou americano de
hoje, é simplesmente impensável. E,
num ato estranho, atípico mesmo,
de contrição, recordando às vezes
que seus ancestrais eram similares,
ele admite até culpá-los por coisas
com as quais nada tinham a ver.
Os antigos navegantes sabiam que
estar perdido em alto mar era grave,
mas que o maior perigo era o de estar perdido sem sabê-lo, continuando a navegar como se estivessem na
rota certa e, portanto, embrenhando-se cada vez mais no desconhecido. É exatamente assim que o Ocidente se comportou quando, com a
crise do comunismo, a Iugoslávia
começou a se dissolver.
No início, o que se passava por lá
não era essencialmente distinto do
que acontecera em outros países da
região. O fato de a federação formar-se por várias nações, porém, ensejou
que demagogos como Milosevic,
percebendo a falência do discurso
que vigorara, garantissem suas posições incentivando rivalidades interétnicas que estavam adormecidas
ou nem mais existiam. Como suas
maquinações não foram interrompidas logo, as que existiam ressurgiram e as inexistentes se materializaram. Em alguns anos, algo que não
passava de manipulação demagógica transformou-se num conflito real
que, apenas para ser interrompido,
exigiu a intervenção militar externa.
Há grupos, etnias, nações em
quantidade suficiente no planeta, e
o equilíbrio é bem mais instável do
que se imagina. Ressuscitar os que
se mesclaram com outros ou, recorrendo a uma história enviesada, inventar novos não parece aconselhável. É, porém, o que se está fazendo
no Brasil com os que descendem em
parte de africanos e com os pobres, a
pobreza tomada como uma categoria essencializada, perpétua, não como situação temporária, mutável.
Acontece que se instaurou no mundo contemporâneo uma espécie de
campeonato da queixa e da vitimização. Todos querem ser vítimas, receber indenizações. E aqui tampouco
faltam oportunistas dispostos a
brincar com o fogo.
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